Sujo (2024)

O menino no escuro

título original (ano)
Sujo (2024)
país
México, EUA, França
gênero
Drama
duração
125 minutos
direção
Astrid Rondero, Fernanda Valadez
elenco
Juan Jesús Varela, Yadira Perez Esteban, Sandra Lorenzano, Alexis Varela, Jairo Hernández, Kevin Aguillar, Karla Garrido
visto em
48ª Mostra de São Paulo (2024)

Embora o nome do protagonista estampe o título, talvez o verdadeiro protagonista deste projeto seja a direção de fotografia, assinada por Ximena Amann. Nada desperta tanto a atenção nesta obra quanto a obsessão das criadoras pelo trabalho em baixas luzes. Para dizer de maneira bem clara, Sujo é um filme escuro. Escuríssimo, aliás — nem filmes de terror passam tanto tempo mergulhados nas sombras. Os personagens vivem exclusivamente nos minutos antes do nascer do sol, ou no entardecer e na madrugada. Constituem silhuetas perdidas pelas montanhas mexicanas, no início, e fantasmas perambulando pelas noites da Cidade do México, em seguida.

Mesmo as poucas cenas durante o dia são curiosamente escuras. Amann trabalha com uma iluminação difusa, dessaturada, esforçando-se para enquadrar os personagens encobertos por objetos ou dentro do casebre de Nemesia (Yadira Pérez), para se abrigarem da luz. Para além de fatores narrativos (Sujo e seus dois melhores amigos crescem em lares sem eletricidade), as diretoras Astrid Rondero e Fernanda Valadez demonstram um prazer vaidoso de composição, como se estivessem pintando um quadro repleto de contornos e contraluzes dispersos na paisagem. 

Estas escolhas determinam nossa relação com o filme e os personagens. Demoramos muito a enxergar o rosto do menino, seja na fase infantil (parte 1 e 2 desta trama dividida em episódios), ou na fase adolescente (partes 3 e 4). Não entendemos ao certo o que o garoto sente e pensa quando permanece trancado no interior de um carro sozinho, a madrugada inteira, ou quando percebe a ausência do pai, assassinado pelos cartéis de drogas. A câmera demora para se aproximar dele e, quando o faz, garante que as luzes escondam suas expressões. 

Este retrato etéreo da criminalidade corre o risco de apenas reforçar o imaginário estereotipado da miséria mexicana, como os gringos adoram ver.

Mesmo adiante, já em fase escolar, o garoto ainda se resume a um estudo de caso, um exemplo de infância condenada pela violência, ao invés de uma subjetividade única. As autoras desejam abordar a violência no país através das bordas, ou seja, a maneira como os familiares de criminosos são afetados pelas atitudes dos patriarcas. No entanto, desconhecemos o interesse repentino de Sujo pela filosofia, sua permissividade moral (o garoto tão correto passa a roubar sem pensar duas vezes), a proximidade com as garotas, a maneira como reage à solidão na capital. Passamos mais de duas horas com um protagonista que desconhecemos.

Na ausência de um mergulho na psicologia, restam símbolos externos e concretos, que interessam mais à direção. O carro onde o menino ficou trancado será sua única herança, e também elemento para tentar resgatar a autonomia e ideal de virilidade. (A direção de fotografia adora filmar cenas através do para-brisa do veículo). Os membros da gangue são tatuados no peito e barriga com o número de sua hierarquia no crime. A tia que o abriga durante tantos anos possui um nome incomum, Nemesia, que significa, em suas palavras, “vingança”. O roteiro não é necessariamente sutil neste aspecto.

Resta uma discussão a respeito de natureza versus criação, ou seja, o quanto da personalidade de um indivíduo seria determinada pelos genes, e o quanto dependeria da cultura. O filho de um sicário teria a oportunidade de escapar à marginalidade, estudar e se tornar um cidadão comum? O letreiro final dedica o drama aos “órfãos deste país em chamas”. Antes disso, entrega-se a um discurso meio fatalista, meio esperançoso, ainda que por meio de recursos mágicos e improváveis — Sujo encontra uma professora gentil, atenciosa, que aceita ser roubada e continua encorajando o aluno. Rondero e Valadez retornam ao ideal da educação milagrosa, e aos professores romanticamente transformadores, como de costume em tantos filmes e novelas dos anos 1980 e 1990. 

O problema deste discurso é a dependência do acaso, da sorte. Ainda bem, para Sujo, que aparece o anjo Susan (Sandra Lorenzano) em sua vida. Todos os demais precisam esperar a chegada de deus ex macchina para salvá-los, pelo visto. O discurso demonstra reflexão insuficiente, tanto para compreender as origens da violência urbana e rural que pretende denunciar, quanto para apontar saídas coletivas e estruturais ao problema. Aparentemente, o Estado e os governos pouco têm a ver com a desigualdade social — a solução residiria na bondade individual e espontânea dos cidadãos. Neste sentido, o longa-metragem transmite certa descrença na política.

Entretanto, estes debates soam secundários face à sobrecarga estetizante, de natureza discretamente fantástica. Nemesia passeia em câmera lenta por uma mata seca; uma chave abre as portas para o céu; uma névoa espessa toma conta dos corredores da escola. Estes fragmentos pouco incorporam à narrativa, nem mesmo se conectam entre si, porém possuem uma aparência chamativa, elegante, ostensiva. Este retrato etéreo da criminalidade corre o risco de apenas reforçar o imaginário estereotipado da miséria mexicana, como os gringos adoram ver. Não por acaso, os Estados Unidos aprovaram — vide o prêmio máximo no Festival de Sundance. 

Sujo (2024)
4
Nota 4/10

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