Na escola, aprendemos que os tremores de terra são causados por movimentos nas placas tectônicas. No entanto, segundo o diretor Makoto Shinkai, há uma razão muito diferente: a presença de vermes gigantescos, que encontraram um portal para sair de um mundo alternativo e adentrar o nosso. Trata-se de criaturas mágicas, que poucos escolhidos podem ver. Quando adentram por completo a nossa atmosfera e caem na superfície, provocam os abalos sísmicos responsáveis pela morte de milhares de pessoas.
Como se percebe, Suzume constitui uma alegoria fantástica para a formação dos fenômenos naturais — mas não apenas isso. Esta também é uma jornada de superação de luto, uma história de amor eterno e à primeira vista, um passeio turístico pelo interior do Japão, um mergulho cósmico no mundo dos mortos, a aventura de uma garota comum que se descobre “escolhida” pelo universo, além de uma trama sobre adoção, amizade, valores familiares. É impressionante a quantidade de “grandes temas” abraçados pelo autor numa única narrativa.
Tamanha ambição justifica tanto o caráter espetacular quanto a aparência de saturação no longa-metragem. Em 122 minutos de ação ininterrupta, o cineasta condensa material suficiente para uma série inteira. A experiência de assistir ao projeto se assemelha a maratonar a primeira temporada completa de uma aventura mágica, com toda a riqueza e a fatiga que isso poderia representar. Cada pequeno respiro na trama serve apenas para preparar a chegada de mais uma reviravolta, um deslocamento pelo país, um novo terremoto. Nem Suzume, nem o filme podem parar.
A garota da trama tem 17 anos de idade, e se apaixona de imediato por um rapaz misterioso que cruza o seu caminho. Motivada a revê-lo, embrenha-se por uma cidade abandonada, onde uma porta mágica abre as vias para o tal verme maligno. Há também chaves de pedra, pensamentos positivos para abrir portais, pessoas cristalizadas no Além e inúmeras outras regras explicadas ao longo da trama. O espectador tem pouco a fazer no sentido de desvendar, imaginar, refletir. A avalanche de imagens, sensações e sentimentos é minuciosamente esmiuçada e entregue de bandeja, na hora desejada por Shinkai.
O discurso se organiza entre uma nostalgia caseira e humilde (o objeto de apreço de Suzume é uma velha cadeira infantil com apenas três pernas) e as configurações de uma sociedade contemporânea, que perde os valores familiares e o senso de comunidade.
A qualidade técnica e poética da animação se revela de fato impressionante. A partir do encontro com Souta Munakata (Hokuto Matsumura), o diretor comprova a capacidade de trabalhar com a profundidade de campo e uma quantidade deslumbrante de detalhes no retrato deste Japão contemporâneo, mais apegado à riqueza naturais do que à tecnologia. (Esta também seria, entre tantos temas, uma fábula sobre o ser humano enfrentando o poder da natureza). O trabalho em formato scope valoriza as paisagens, criadas com um esmero de fotografia, cores e desenho que revela o melhor da animação contemporânea mundial.
Enquanto o horizonte verdejante, os rios e os céus repletos de pássaros ganham um traço mais cartunesco, a criatura maligna e de grande nitidez possui terminações nervosas e brilha como um aparelho eletrônico. No fundo, o discurso se organiza entre uma nostalgia caseira e humilde (o objeto de apreço de Suzume é uma velha cadeira infantil com apenas três pernas) e as configurações de uma sociedade contemporânea, que perde os valores familiares e o senso de comunidade. Não por acaso, os portais mágicos aparecem em locais abandonados da cidade, onde os grupos costumavam se reunir.
Para o público ocidental, algumas produções de sentido podem soar descoladas de nossos referenciais e, portanto, um tanto estranhas. Quando a garota revê Souta, e a câmera deixa claro que se trata do mesmo homem, ela se exclama: “É ele!”. Ao reencontrar a porta buscada, afirma: “É aquela porta!”. Ao perceber que os vermes são invisíveis à maioria da população, grita: “Ninguém está vendo!”. Existe um aspecto de redundância, como se as falas precisassem repetir tudo o que a imagem já mostra, de maneira bastante satisfatória, por si própria.
Neste sentido, a relação com o público se torna infantil. Isso não significa que a trama se comunique apenas com crianças. Entretanto, o olhar da direção considera um espectador que precisa ser pego na mão, tendo em seguida as relações, explicadas, esmiuçadas, repetidas, até garantir que todos compreenderam os laços entre Suzume, o homem-transformado-em-cadeira e este universo sobrenatural. O projeto constitui um escapismo extravagante, uma forma deliberada de alienação e desprendimento, como Hollywood sempre sonhou em fazer — e nem sempre alcança.
Outros aspectos se assemelham aos códigos da indústria norte-americana, para além da propaganda extensiva de uma rede de fast food e de uma marca de eletrônicos. A figura do acompanhante fofo e engraçado da protagonista, que a ajuda enquanto se mete nas próprias confusões (o sidekick propenso a gerar bonecos e produtos derivados), adquire um novo contorno pelas figuras da cadeira que fala e do gato mágico. A redenção da menina, a prova do amor eterno, os reencontros simbólico com a mãe, e efetivo com a tia, se dão nos instantes exatos que se aguardaria tais acontecimentos, para maximizar a recompensa emocional ao público. Os múltiplos finais arrastam um pouco a conclusão, porém garantem que todos os aspectos morais sejam devidamente trabalhados pela obra.
Ao final, a originalidade se combina com uma fórmula rígida. O cinema de monstros invadindo cidade se casa com o romance impossível, o drama espiritual, a aventura, a fantasia, a ficção científica. Os círculos de discussão sobre cinema têm perdido o sentido do termo “cinema total”, aplicado a obras que buscam conter um pouco de todos os elementos e gênero, juntando emoções variadas à ação e ao suspense, apelando ao público adulto e infantil, de todos os espectros político-ideológicos. Suzume constituiria um dos raros exemplares, endinheirados e extravagantes, de cinema total.