Jean-Michel Bouchard (Rémy Girard) não compreende a sociedade em que se insere. Este homem de natureza progressista discorda das ideias autoritárias da direita conservadora, porém tampouco se enxerga nas pautas identitárias da nova esquerda. Reivindicações pelo uso do pronome neutro, lutas LGBTQIA+, associações entre autor e obra, exigências de respeito a povos originários, representação de minorias na política, uso de redes sociais para denúncias, tudo isso lhe parece exagerado, desnecessário, injustificável.
O parágrafo acima diz respeito ao arquivista que conduz Testamento, mas poderia se aplicar ao cineasta Denys Arcand. O veterano canadense de O Declínio do Império Americano (1986) e As Invasões Bárbaras (2003) decide encerrar a trilogia com esta comédia política, espécie de caleidoscópio dos novos tempos. No centro da trama existe o homem alheio à contemporaneidade, vivendo numa instituição para idosos. Certo dia, descobre a indignação de jovens brancos contra um quadro no saguão do edifício, retratando um massacre indígena. O grupo de manifestantes acredita falar em nome dos povos originários.
Pelo olhar do diretor, o panorama desta sociedade histérica e moralizante inclui veganismo, geleia real, exercícios físicos diários, exigência de mulheres artistas, presença crescente de indivíduos não-cristãos no Canadá, pessoas não-binárias, protestos pelas ruas, desprezo pela literatura, supervalorização dos videogames, questões de saúde mental, política-espetáculo de deputados fascinados por redes sociais, Cirque du Soleil e Céline Dion. Arcand dispara contra aquilo que enxerga como um império das imagens, do supérfluo. Um mundo de aparências e do politicamente correto.
O deboche é algo muito diferente da crítica. Arcand sabe traduzir o estranhamento em relação a estes jovens da nova esquerda, porém jamais demonstra a intenção de compreendê-los ou ouvi-los.
O melhor aspecto do longa-metragem provém da atuação comprometida de seu elenco central. Caso acentuassem o caráter satírico do texto, Rémy Girard, Sophie Lorain e Marie-Mai Bouchard penderiam ao ridículo, à explicitação do óbvio. Ora, Girard conduz este homem com uma neutralidade inabalável, como se o sujeito fosse impermeável aos sentimentos transbordando ao redor. Trata-se de figuras atônitas, que nunca combatem a chamada cultura woke — eles simplesmente não a compreendem, nem tentam compreender. São vistos como estrangeiros em seu próprio país.
Em contrapartida, o deboche é algo muito diferente da crítica. Neste aspecto, Testamento esvazia rapidamente o alcance de seu discurso. Arcand sabe traduzir o estranhamento em relação a estes jovens da nova esquerda, porém jamais demonstra a menor intenção de compreendê-los, ouvi-los, questionando a mudança de pautas entre os progressistas de décadas atrás e aqueles do século XXI. Os protagonistas, com mais de 50 anos, limitam-se a desdenhar destes sujeitos caricaturais — para o outro, a diferença, os coadjuvantes, permite a paródia poupada no caso dos personagens centrais e alter-egos do cineasta.
Logo, a comédia canadense ridiculariza a integralidade de pautas da juventude de esquerda, ao invés de apontar eventuais exageros e derivas. Para gerar mais conteúdo cômico, passa como um rolo compressor por cima desta compreensão de mundo. Lutar por minorias, lutar contra quadros, lutar contra políticos conservadores — é tudo a mesma coisa, tudo se equivale. Este conformismo em relação ao estado das coisas sugere que perdemos nosso rumo, e o melhor a fazer seria não se misturar com estas pessoas, caso em que a direita e a esquerda identitária seriam equivalentes. São estranhos, são incompreensíveis, não me representam. Tanto faz.
O cineasta não percebe que, desta maneira, investe precisamente no jogo da direita raivosa. Debochar de um grupo sem contextualizar suas origens, sem investigar seus objetivos, nem oferecer alternativas ou saídas, equivale a desconsiderar uma ideologia inteira. O longa-metragem não difere muito de uma produção que os partidos religiosos brasileiros fariam para desqualificar bancadas e grupos de esquerda. É mais fácil desconsiderar a luta do outro enquanto mimimi, encheção de saco, do que analisar as razões pelas quais adquiriu tal formato na sociedade em questão.
O canadense lembra aquele homem saudoso que afirma: “No meu tempo, estas coisas não existiam” — exatamente como alegam os direitistas. Este não é mais o tempo de Jean-Michel Bouchard, mas o roteiro faz questão de esclarecer, no terço final, os valores que realmente lhe interessam, no caso, a família patriarcal. Apesar do imbróglio político e midiático envolvendo o quadro, a narrativa sofre uma guinada brusca para apostar no romance do protagonista com Suzanne Francoeur e no reencontro desta com a filha perdida.
A conclusão se assemelha, portanto, a uma telenovela de gosto duvidoso. Casais se formam, pais perdoam filhos que aparecem abruptamente pela porta (com direito a um zoom-in obsceno no rosto da mãe emocionada), e o pai simbólico, junto da mãe simbólica, caminham com o bebê pela floresta. Deixem os jovens identitários gritarem lá fora — aqui, o que importa é a manutenção da família cis, hétero, branca, de classe média. O discurso ainda considera o gesto de Girard uma “bondade altruísta”, ausente nos ativistas em frente ao edifício. A discussão se torna moral e, essencialmente, reacionária, no sentido estrito do termo. Quem precisa de cineastas de direita quando a própria esquerda se sabota tão bem?