Após tantas mansões mal-assombradas, com fantasmas percorrendo os casarões antigos e repletos de cômodos, chega a vez do edifício mal-assombrado. Em particular, um local de classe média-baixa, caindo aos pedaços, com poucos moradores insistindo em permanecer. O título Venus faz referência ao prédio fictício de Madrid, conhecido por mortes, sacrifícios e assassinatos, onde se passa parte considerável da trama. Este espaço possui farta documentação em jornais e artigos, no entanto, ninguém se lembra dele. É fácil se esquecer de indivíduos à margem da sociedade.
Neste grupo, encontram-se em especial as mulheres marginalizadas: uma mãe solteira com problemas de dinheiro, a dançarina sensual de uma casa noturna, as senhoras idosas vivendo sozinhas, a garotinha com problemas de cognição. Estas figuras serão o alvo de homens violentos, sanguinários, que tentam recuperar uma mala repleta de drogas, roubada por Lucía (Ester Expósito). A batalha está armada: primeiro, pelas relações de gênero, com a integralidade dos homens duelando contra a integralidade das mulheres, e em seguida, das mulheres entre si. O diretor Jaume Balagueró imagina uma espécie de Battle Royale onde pode haver apenas um vencedor ao final.
Um dos elementos mais interessantes deste projeto se encontra na rara aproximação entre o filme de máfia e o filme de bruxas. Por um lado, existe um aspecto realista de sujeitos armados em busca da dançarina que roubou seu valioso produto. Por outro lado, a pequena Alba (Inés Fernandéz) acredita se comunicar com a Empregada, uma figura demoníaca do andar de cima, que lhe traz presentes bizarros, a exemplo de lágrimas de crianças e dentes soltos. No clímax, enquanto os ladrões buscam arrombar uma porta, Lucía precisa lidar com uma suposta criatura mágica no banheiro.
Assim, o longa-metragem abraça com vigor as jornadas natural e a sobrenatural, fazendo com que este confronto acentue a diferença entre ambas as manifestações e produza uma espécie de humor pelo incômodo, pela improbabilidade. Na sala de cinema, os críticos riam exageradamente de situações sérias, seja pelo tom absurdo, seja pela dificuldade de lidar com o desconhecido. As personagens gravemente feridas, mas que ainda se deslocam normalmente, e o quadro renascentista grotesco desperta a sensação de que a fronteira separando dois mundos foi arrancada de maneira abrupta demais — num gesto voluntário dos criadores, claro.
O texto conduz a totalidade de seus personagens ao edifício rumo ao clímax, numa celebração bela e macabra do “demônio feminino de dor e desespero”.
Em paralelo, o roteiro consegue fugir de certas armadilhas fáceis dos diversos subgêneros com que trabalha. A presença de sons no andar de cima não resulta em nenhum dos elementos fantasmagóricos aguardados. A figura da Empregada está longe do imaginário de mulheres esguias e amarguradas, enquanto os mafiosos se provam menos potentes do que se esperaria do grupo. O texto conduz a totalidade de seus personagens ao edifício feminino, rumo ao clímax, numa celebração bela e macabra do “demônio feminino de dor e desespero”.
Aqui, a maternidade e a feminilidade se convertem em elementos centrais, algo curioso para uma obra dirigida, roteirizada, produzida, filmada e montada por homens. Este coletivo masculino decide se interrogar sobre as mulheres com filhos e aquelas que passam a cuidar dos filhos deixados pelos outros. A subtrama a respeito de figuras malvadas possuindo jovens meninas se sobressai pelo caráter tão perverso quanto materno, enquanto o longo corte no ventre da figura que nunca pariu remete à cesárea. Aqui, prega-se a independência feminina: Alba não precisa dançar se não quiser; não precisar ser mãe, se não quiser.
Esteticamente, Balagueró e o produtor Alex de la Iglesia atenuam os traços grotescos de que ambos são capazes, rumo a um terror crescente. O terço inicial sugere um drama de personagens convencional, no entanto, conforme o sobrenatural se concretiza, as cores dos cenários perdem a saturação (acentuando o contraste com a cor viva do sangue), os monstros revelam seus corpos e a fantasia enlouquecida toma conta do filme. Venus parece inteiramente construído para o delirante terceiro ato, quando todas as pontas soltas se amarram e o título justifica seus inúmeros sentidos.
Através de uma mitologia improvável, que troca a espiritualidade pela carnificina, os autores desenvolvem uma estranha homenagem ao empoderamento feminino, que consiste em abandonar patrões abusivos, namorados chantagistas e pressões sociais. Sim, há a tendência a transformar a mulher solteira em mãe postiça rumo ao final da trama, no entanto, a narrativa sugere que, pelo menos, seria por escolha da personagem desta vez. A ideia de concluir uma aventura macabra com a figura da mulher vitoriosa e sangrando, caminhando pelas ruas, remete diretamente a O Bar (2017), de Alex de la Iglesia.
O elenco possui uma grande responsabilidade no sucesso da empreitada, seja pela câmera colada em seus corpos e rostos, sem respiro; seja pelo número limitado de personagens em cena. Ester Expósito arregala bem os olhos numa mistura de raiva e iluminação espiritual, próxima da loucura, algo que lhe serve de transição à passagem final. A garotinha Inés Fernandéz representa uma verdadeira revelação pelo trabalho com diálogos, roubando as cenas em que aparece. Aos homens, cabem papéis canastrões e estereotipados: a complexidade psicológica, neste caso, fica somente do lado das mulheres.
Enquanto isso, multiplicam-se os indícios discretos de que existe algo errado (ou muito certo) no cosmos: há OVNIs no céu, ao passo que um eclipse raro se aproxima. Os elementos espaciais se alinham para a jornada da heroína, e não há nada mais forte, exagerado e belo do que esta homenagem cósmica a uma única mulher por quem o universo inteiro se move. Por mais ridícula que seja a imagem da jovem costurando a própria barriga com um grampeador, há símbolos fortes por trás da improbabilidade desta ação.
Afinal, tudo o que ocorre em torno de Lucía pode ser lido como metáfora para a descoberta desta garota em relação ao seu espaço social. Os autores criam uma jornada megalomaníaca, em termos de proporções, para refletir um desenvolvimento psicológico e íntimo — fora do edifício Venus, os moradores sequem devem saber de tudo o que ocorre ali dentro. Neste sentido, o filme constitui uma homenagem a Lucía, ao invés de uma história sobre ela. Ah, os letreiros iniciais começam avisando que, quando os astros se alinharem, três garotas morrerão ao nascer do dia. Eles não estão mentindo.