Venus (2022)

A deusa da carnificina

título original (ano)
Venus (2022)
país
Espanha
gênero
Terror
duração
100 minutos
direção
Jaume Balagueró
elenco
Ester Expósito, Ángela Cremonte, Inés Fernández, Federico Aguado, Fernando Valdivielso, Magüi Mira
visto em
Festival de Toronto 2022

Após tantas mansões mal-assombradas, com fantasmas percorrendo os casarões antigos e repletos de cômodos, chega a vez do edifício mal-assombrado. Em particular, um local de classe média-baixa, caindo aos pedaços, com poucos moradores insistindo em permanecer. O título Venus faz referência ao prédio fictício de Madrid, conhecido por mortes, sacrifícios e assassinatos, onde se passa parte considerável da trama. Este espaço possui farta documentação em jornais e artigos, no entanto, ninguém se lembra dele. É fácil se esquecer de indivíduos à margem da sociedade.

Neste grupo, encontram-se em especial as mulheres marginalizadas: uma mãe solteira com problemas de dinheiro, a dançarina sensual de uma casa noturna, as senhoras idosas vivendo sozinhas, a garotinha com problemas de cognição. Estas figuras serão o alvo de homens violentos, sanguinários, que tentam recuperar uma mala repleta de drogas, roubada por Lucía (Ester Expósito). A batalha está armada: primeiro, pelas relações de gênero, com a integralidade dos homens duelando contra a integralidade das mulheres, e em seguida, das mulheres entre si. O diretor Jaume Balagueró imagina uma espécie de Battle Royale onde pode haver apenas um vencedor ao final.

Um dos elementos mais interessantes deste projeto se encontra na rara aproximação entre o filme de máfia e o filme de bruxas. Por um lado, existe um aspecto realista de sujeitos armados em busca da dançarina que roubou seu valioso produto. Por outro lado, a pequena Alba (Inés Fernandéz) acredita se comunicar com a Empregada, uma figura demoníaca do andar de cima, que lhe traz presentes bizarros, a exemplo de lágrimas de crianças e dentes soltos. No clímax, enquanto os ladrões buscam arrombar uma porta, Lucía precisa lidar com uma suposta criatura mágica no banheiro.

Assim, o longa-metragem abraça com vigor as jornadas natural e a sobrenatural, fazendo com que este confronto acentue a diferença entre ambas as manifestações e produza uma espécie de humor pelo incômodo, pela improbabilidade. Na sala de cinema, os críticos riam exageradamente de situações sérias, seja pelo tom absurdo, seja pela dificuldade de lidar com o desconhecido. As personagens gravemente feridas, mas que ainda se deslocam normalmente, e o quadro renascentista grotesco desperta a sensação de que a fronteira separando dois mundos foi arrancada de maneira abrupta demais — num gesto voluntário dos criadores, claro.

O texto conduz a totalidade de seus personagens ao edifício rumo ao clímax, numa celebração bela e macabra do “demônio feminino de dor e desespero”.

Em paralelo, o roteiro consegue fugir de certas armadilhas fáceis dos diversos subgêneros com que trabalha. A presença de sons no andar de cima não resulta em nenhum dos elementos fantasmagóricos aguardados. A figura da Empregada está longe do imaginário de mulheres esguias e amarguradas, enquanto os mafiosos se provam menos potentes do que se esperaria do grupo. O texto conduz a totalidade de seus personagens ao edifício feminino, rumo ao clímax, numa celebração bela e macabra do “demônio feminino de dor e desespero”.

Aqui, a maternidade e a feminilidade se convertem em elementos centrais, algo curioso para uma obra dirigida, roteirizada, produzida, filmada e montada por homens. Este coletivo masculino decide se interrogar sobre as mulheres com filhos e aquelas que passam a cuidar dos filhos deixados pelos outros. A subtrama a respeito de figuras malvadas possuindo jovens meninas se sobressai pelo caráter tão perverso quanto materno, enquanto o longo corte no ventre da figura que nunca pariu remete à cesárea. Aqui, prega-se a independência feminina: Alba não precisa dançar se não quiser; não precisar ser mãe, se não quiser. 

Esteticamente, Balagueró e o produtor Alex de la Iglesia atenuam os traços grotescos de que ambos são capazes, rumo a um terror crescente. O terço inicial sugere um drama de personagens convencional, no entanto, conforme o sobrenatural se concretiza, as cores dos cenários perdem a saturação (acentuando o contraste com a cor viva do sangue), os monstros revelam seus corpos e a fantasia enlouquecida toma conta do filme. Venus parece inteiramente construído para o delirante terceiro ato, quando todas as pontas soltas se amarram e o título justifica seus inúmeros sentidos.

Através de uma mitologia improvável, que troca a espiritualidade pela carnificina, os autores desenvolvem uma estranha homenagem ao empoderamento feminino, que consiste em abandonar patrões abusivos, namorados chantagistas e pressões sociais. Sim, há a tendência a transformar a mulher solteira em mãe postiça rumo ao final da trama, no entanto, a narrativa sugere que, pelo menos, seria por escolha da personagem desta vez. A ideia de concluir uma aventura macabra com a figura da mulher vitoriosa e sangrando, caminhando pelas ruas, remete diretamente a O Bar (2017), de Alex de la Iglesia.

O elenco possui uma grande responsabilidade no sucesso da empreitada, seja pela câmera colada em seus corpos e rostos, sem respiro; seja pelo número limitado de personagens em cena. Ester Expósito arregala bem os olhos numa mistura de raiva e iluminação espiritual, próxima da loucura, algo que lhe serve de transição à passagem final. A garotinha Inés Fernandéz representa uma verdadeira revelação pelo trabalho com diálogos, roubando as cenas em que aparece. Aos homens, cabem papéis canastrões e estereotipados: a complexidade psicológica, neste caso, fica somente do lado das mulheres.

Enquanto isso, multiplicam-se os indícios discretos de que existe algo errado (ou muito certo) no cosmos: há OVNIs no céu, ao passo que um eclipse raro se aproxima. Os elementos espaciais se alinham para a jornada da heroína, e não há nada mais forte, exagerado e belo do que esta homenagem cósmica a uma única mulher por quem o universo inteiro se move. Por mais ridícula que seja a imagem da jovem costurando a própria barriga com um grampeador, há símbolos fortes por trás da improbabilidade desta ação. 

Afinal, tudo o que ocorre em torno de Lucía pode ser lido como metáfora para a descoberta desta garota em relação ao seu espaço social. Os autores criam uma jornada megalomaníaca, em termos de proporções, para refletir um desenvolvimento psicológico e íntimo — fora do edifício Venus, os moradores sequem devem saber de tudo o que ocorre ali dentro. Neste sentido, o filme constitui uma homenagem a Lucía, ao invés de uma história sobre ela. Ah, os letreiros iniciais começam avisando que, quando os astros se alinharem, três garotas morrerão ao nascer do dia. Eles não estão mentindo.

Venus (2022)
7
Nota 7/10

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