É dia de festa na família. Chegam tias, tios, crianças, convidados. Em cada cômodo, alguém aspira o tapete, arruma os móveis, prepara bolos, arma a estrutura na parte externa. O homenageado da noite é Tona, o pai que a menina Sol deseja muito rever, embora nunca a permitam. “Ele está descansando”, insistem. A pequena lança uma pergunta à inteligência artificial no telefone celular: “Meu pai vai morrer?”, ao que o aparelho afirma não ser capaz de responder. “O mundo vai acabar?”, ela insiste — o que talvez, para a compreensão infantil, corresponda a um sinônimo da morte do pai.
Tótem organiza uma festa alegre sob fundo de tristeza, de mistério e possível finitude. O aniversariante está preso a uma cama, por motivos nunca plenamente determinados. O avô trata um câncer, mas evita a quimioterapia. As irmãs de Tona discutem tratamentos, ainda que o dinheiro esteja curto. Para que servem as festas, afinal? Para celebrar alguém, para tentar diminuir o sofrimento, disfarçar a tragédia iminente? Pelo menos dois personagens confessam que não gostariam de estar ali. Paira um aspecto de esforço, de encenação (portanto, artificial) neste esforço coletivo e claramente amoroso dos amigos e familiares.
A diretora Lila Avilés opera neste registro em que as emoções precisam ser deixadas em segundo plano, pois há muito a fazer. Ninguém tem tempo para chorar, refletir, contemplar, pois o bolo está queimando, o cabelo ainda precisa ser pintado, e a menina está preparando um show ao pai. O roteiro espertamente deixa que os sentimentos transpareçam nos gestos cotidianos, nas ínfimas interações entre pelo menos uma dúzia de personagens – além do gato, do cachorro, do peixe, dos caracóis, dos insetos. A dispersão do filme coral possibilita as diferentes interpretações de vida e morte no interior da mesma casa.
A cineasta possui amplo domínio deste foco múltiplo. Junto ao diretor de fotografia Diego Tenorio, explora cada canto da casa, cada interação entre adultos e crianças, entre humanos e bichos. Há espaço para close-ups nos cachorros que observam a limpeza espiritual dos espaços; planos de detalhe nos louva-deuses pelo jardim; inserção no desconforto do casal de amigos que chega cedo demais. A câmera busca estar atenta a tudo ao mesmo tempo, numa onipresença que poderia resultar em urgência forçada. Felizmente, a montagem permite respiros, instantes de silêncio, alternando entre o caos cômico e a tristeza da volta à realidade (vide os adultos embaralhando as sílabas ao falarem sobre quimioterapia em frente às crianças).
Tótem coloca entre parêntese um mundo desabando. Ele funciona como a fotografia tirada segundos antes do estouro da represa.
Além disso, faz questão de acenar ao mundo externo, fora do contexto excepcional de festividades. Os salários atrasados da enfermeira, o trabalho da mãe no teatro e a antiga fama de garanhão do aniversariante encontram uma maneira de impregnar a narrativa pelas frestas. Assim, os personagens se tornam tridimensionais, complexos. Enquanto isso, a câmera efetua um balé discreto entre rostos e corpos, sem chamar atenção excessiva a si própria. É preciso muita coordenação e controle para desempenhar algo que soe tão descontrolado. O realismo exige um esforço profundo, visível nesta obra.
Para o cinema latino-americano, em especial, a iniciativa pode soar pouco inovadora. Caso originalidade seja um fator determinante no julgamento, Tótem sairia prejudicado pela comparação com obras que se arriscaram em linguagens muito semelhantes, com resultados superiores — O Pântano (2001), de Lucrecia Martel, em especial, mas também Família Submersa (2018), de María Alché; Manto de Joias (2022), de Natalia López; e mesmo Benzinho (2018), de Gustavo Pizzi. Avilés não tenta fugir dos códigos do realismo social que têm definido algumas das melhores iniciativas do nosso cinema, capaz de olhar para a classe média com empatia e cumplicidade, ao invés de exotismo ou julgamento moral.
No entanto, a distinção não precisaria constituir a qualidade central do projeto, que se alicerça em atuações excepcionais e uniformes, junto a um controle espaço-temporal precioso da montagem, e uma direção de fotografia capaz de iluminar e focar diversos cômodos, texturas e objetos, em internas ou externas. Ao contrário de autores que buscam o destaque de sua própria função, a diretora mexicana se sobressai pela uniformidade do trabalho com as demais equipes artísticas. Nenhum elemento da produção se sobressai, nem positiva, nem negativamente.
A autora guarda sua única catarse para a cena final, de um teor explosivo e misterioso. Ao longo de todo o dia de preparativos, planta conflitos e acena à morte no horizonte. No entanto, evita a conclusão brutal de O Pântano, por exemplo. Ela prefere aludir a uma leitura metafísica, repleta de fogos e sons, em conjunção com o rosto expressivo de Sol, a garota de sete anos que observa tudo e se transforma no verdadeiro olhar da casa (além de cúmplice do espectador). Algo parece ter se transformado no semblante da garota, que enfim compreendeu melhor o difícil funcionamento da vida adulta — e talvez tenha percebido o desfecho que aguarda seu pai.
Restarão questionamentos recalcados, ou apenas postergados. A virtude deste cinema ao vivo, com poucos saltos temporais e narrativa comprimida ao longo de poucas horas, se encontra na capacidade de sugerir elementos que a obra não pretende esmiuçar. Há relatos de sexualidade reprimida no recinto, de homens se sentindo inferiorizados pelo controle feminino; belos encontros entre ciência e superstição; entre o progressismo da sobrinha que se recusa a limpar a casa (porque o irmãozinho dela não é obrigado a limpar) e o conservadorismo da tia que acha ser normal pedir à enfermeira para trabalhar mais, ganhando menos do que deveria.
Tótem coloca entre parêntese um mundo desabando. Ele funciona como a fotografia tirada segundos antes do estouro da represa, quando se percebe as evidentes fissuras da construção, mas ainda não se presencia a chegada das águas. Assim, tem o potencial de reverberar com o espectador para além da sessão, quando tantos questionamentos estabelecerem conexões pessoais com o público, segundo o histórico e vivência de cada um. Talvez a obra inteira funcione como preparativo para o plano derradeiro, de poucos segundos apenas, e cujo sentido se completa apenas ao juntar as peças espalhadas até então.