Toxic (2024)

O corpo vulnerável

título original (ano)
Akiplėša (2024)
país
Lituânia
gênero
Drama
duração
99 minutos
direção
Saulė Bliuvaitė
elenco
Vesta Matulytė, Ieva Rupeikaitė, Giedrius Savickas, Vilma Raubaitė, Eglė Gabrėnaitė
visto em
77º Festival de Locarno (2024)

Neste drama, a diretora Saulė Bliuvaitė demonstra verdadeira fascinação pelos corpos e comportamentos “fora da norma”. A protagonista, Marija (Vesta Matulytė), é considerada bonita, apesar de mancar desde o nascimento. O rapaz com talento para artes marciais perdeu a visão em um dos olhos. A madrasta é uma mulher obesa; o melhor amigo gagueja. A vizinha possui alguma forma de deficiência física e cognitiva, e a garota que acompanha a gangue local traz o rosto deformado por queimaduras. Adiante, uma série de fotografias com rostos de meninas trará desenhos de cortes e deformidades.

Estes “desvios” do padrão servem como sintomas de uma população miserável, à margem dos centros abastados da Lituânia. Trata-se da principal ousadia, e também o ponto questionável, do projeto: utilizar deficiências enquanto metáfora para a pobreza e a exploração. Nenhuma pessoa rica atravessa as imagens, que preferem as famílias vivendo em moradias insalubres, circulando por bares repulsivos e divertindo-se nas águas sujas de uma barreira, onde mergulham junto aos vermes. 

“Tóxicos”, no caso, são os ambientes, os comportamentos, as relações. Em chave determinista, a cineasta estima que adolescentes provindas de famílias displicentes se convertem automaticamente em jovens rebeldes, criminosas, irresponsáveis, e mais propensas a abusos do sistema. Ninguém recebe amor ou atenção. Por isso, os pais pagam as filhas para saírem de casa e liberarem o único cômodo disponível para um encontro sexual, e a mãe debocha do desejo de Marija em se tornar modelo. “Ela é manca”, repete. As pessoas se expressam com uma dureza implacável.

A principal ousadia, e também o ponto questionável do projeto, consiste em utilizar deficiências enquanto metáfora para a pobreza e a exploração.

A escola de modelos que atravessa toda a narrativa serve como idealização simetricamente oposta à condição destas jovens garotas. O longa-metragem não aposta em sutilezas, preferindo oferecer às protagonistas, sem qualquer oportunidade de ascensão social, uma fuga via beleza. Basta emagrecer, posar para as câmeras, e desembolsar uma quantia considerável para custear um álbum de fotografias profissional. Qualquer espectador minimamente crítico terá antevisto a índole real desta empresa, cujas “aulas” e testes soam cada vez menos verossímeis. No entanto, a direção estica o conflito, sustentando a aparência de mistério.

Portanto, o roteiro não se contenta em acompanhar uma juventude em busca de magreza e reconhecimento de seu caráter “especial”. Prefere recorrer a aspectos mais sórdidos: a amiga que se infesta com um parasita de propósito, no intuito de perder peso rapidamente; a decisão de jogar os restos de comida pela janela, até juntarem insetos e formarem larvas. Os corpos apodrecem, ou sofrem outras formas de abuso, que culminam no estupro (ou tentativas de estupro) por parte de vizinhos e familiares voltadas contra crianças e pré-adolescentes. Os corpos são explorados da primeira à última cena.

A procura pela “estética da margem” faz com que Bliuvaitė esprema as heroínas na metade inferior da imagem. Deste modo, deixa um amplo teto em cada enquadramento, criando um aspecto estranho, desigual, como se os espaços oprimissem as garotas. Nota-se certo estetismo nos planos rigidamente fixos, na escolha pelo ponto de vista externo, conferindo tanta atenção aos seres humanos quanto ao lixo do cenário industrial. Não basta insistir, cena após cena, na desumanização de personagens via conflitos e diálogos. É preciso, igualmente, comparar as personagens a objetos de cena.

Pelo menos, a diretora apresenta domínio deste “mundo cão”. Sabe como trabalhar com as atrizes, sem afetações, enquanto permite na narrativa alguns arroubos de carinho rumo ao final. O pai de Kristina demonstra a vontade de ajudá-la (com o conselho agridoce que saia daquela cidade o quanto antes). Já o desfecho apresenta certo otimismo ao acreditar que, apesar dos golpes ininterruptos desta vida triste, ainda há esperança para as amigas graças à simples insistência de seguir adiante. 

Toxic serve enquanto bela constatação de um cenário adverso, ou descrição inicial de um problema crônico. O discurso se prova incapaz de investigar as origens do dilema, propor soluções, ou imaginar qualquer alternativa metafórica. As meninas começam e terminam suas curtas jornadas ao relento, os corpos sofrendo à beira da estrada, com frio. Apesar de tentarem, não avançam um centímetro sequer rumo à concretização dos sonhos. Trata-se de um ponto de vista implacável, sem concessões, porém paternalista e piedoso, do tipo que passa a mão na cabeça e sugere: “Aguenta aí, sei que está tudo péssimo, mas uma hora, há de melhorar. Continue tentando”

Este humanismo soa limitado ou, pelo menos, conformista em relação aos conflitos que pretende denunciar. É curioso que o drama tenha sido o grande vencedor do Festival de Locarno 2024, um evento especializado no cinema independente, ousado, apontando novas vozes. Embora a diretora seja jovem, em seu primeiro longa-metragem, sua proposta de cinema ou visão de mundo não soa exatamente atualizada. Ela bebe nas propostas de nomes como Ulrich Seidl e Andrey Zvyagintsev, que acreditam denunciar os males da humanidade de uma maneira que não se distingue exatamente de uma recriação sádica desta realidade. 

Toxic (2024)
5
Nota 5/10

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