Um Certo Cinema Gaúcho de Porto Alegre (2023)

Atividade extracurricular

título original (ano)
Um Certo Cinema Gaúcho de Porto Alegre (2023)
país
Brasil
Linguagem
Documentário
duração
107 minutos
direção
Boca Migotto
visto em
Festival de Gramado

Este documentário parte de uma pesquisa acadêmica, efetuada pelo cineasta Boca Migotto durante a tese de doutorado. Ele o explica com clareza nos letreiros explicativos iniciais, justificando em qual período realizou as entrevistas, e em qual bar específico da cidade de Porto Alegre filmou todas as conversas. Trata-se de informações irrelevantes para a experiência cinematográfica, soando como resquícios da metodologia científica.

O aspecto de pesquisa também se estende ao filme na totalidade — algo que pode parecer óbvio, embora não o seja. Teses, a priori, não possuem ambição artística, mesmo que estudem alguma forma de arte. Os critérios e objetivos da academia também se mostram radicalmente distintos daqueles de criação artística. O público não é o mesmo, nem a linguagem (escrita ou audiovisual). Por isso, seria compreensível que o conhecimento adquirido pelo autor fosse radicalmente transformado na hora de pensar na criação de um longa-metragem.

Ora, Um Certo Cinema Gaúcho de Porto Alegre carrega a linearidade, o didatismo e a maneira de pensar de uma investigação científica, para o bem ou para o mal. Por exemplo, o autor estima ser adequado, ou frutífero, filmar as páginas impressas de sua tese. Nos palcos do Festival de Gramado, lembrou que o livro decorrente da pesquisa estaria disponível para compra. O tom era de brincadeira, mas a mensagem, não. Migotto parece dedicado a fazer circular este conhecimento, pouco importando o formato: tese, livro, filme. 

O documentário traz bastante informação, e representa uma bela aula de cinema. Resta pensar se esta seria a função de uma obra de arte.

Até por isso, as imagens e o conceito cinematográfico, em si, são deixados em segundo plano. Convida-se dezenas de cineastas e pesquisadores para se sentarem num bar e explicarem como se desenvolveu o cinema no Rio Grande do Sul, dos primórdios à contemporaneidade, em ordem cronológica, passo a passo. Listam-se os principais filmes, os maiores diretores, os prêmios marcantes, os coletivos de destaque. 

Para-se na década de 2020, pois não existe propósito específico no discurso para além de acompanhar esta produção regional o máximo de tempo possível. Fosse feito daqui a cinco anos, por exemplo, o documentário incorporaria outros nomes à montagem, pois se limita a seguir, placidamente, uma história em andamento. Os letreiros finais ainda se desculpam por não incluírem no corte final todas as pessoas entrevistadas — mais uma preocupação irrelevante ao cinema, e que comprova a primazia do raciocínio de pesquisador à função de cineasta. O autor parece não ter mudado completamente a chave entre ambas as atividades.

Deste modo, a principal qualidade reside no caráter informativo, voluntariamente procurado por Migotto. Para quem não conhece a evolução desta cinematografia, a montagem segue cada etapa com eficácia, em ritmo agradável, e de fácil compreensão a um público distante do meio universitário. Na maior parte dos casos, os entrevistados possuem uma fala despojada, favorecida pelo contexto do bar, onde se percebem garçons passando por trás. Busca-se a estrutura do papo informal, que contribui a diluir a seriedade do tema. 

No entanto, o bate-papo entre amigos se reveste de um caráter autoelogioso e condescendente. Segue-se o cinema gaúcho pelo prisma dos maiores sucessos. Críticos, pesquisadores e cineastas valorizam os esforços alheios, lembram do potencial da produção sulista. Não há nenhuma dissonância entre as vozes, que falam em uníssono. Também não são listados os fracassos, as tentativas mais desajeitadas, as controvérsias de abordagem, temática, linguagem. Melhor esquecer os tropeços (comuns a qualquer percurso evolutivo) em prol de algo mais leve e consensual.

Além disso, a obra se converte num olhar tradicionalista aos estudos de cinema. Isso significa que a rememoração deste cinema se traduz numa história de diretores, listados em suas conquistas. Conhece-se pouco sobre os produtores, diretores de arte, de fotografia, atores gaúchos e outros criadores igualmente importantes. O pensamento autoral ainda nos ensina que estudar o cinema consiste em listar os diretores de destaque. Mesmo que a Casa de Cinema de Porto Alegre e o Clube Silêncio sejam pontuados, esta segue uma releitura de valorização hierárquica (o diretor acima dos demais).

A perspectiva também se volta à história dos filmes — outra escolha menos óbvia do que poderia parecer. Inverno, Ilha das Flores, Castanha, Cão Sem Dono, Ainda Orangotangos, Rifle, A Mulher do Pai e tantos outros são mencionados. Ora, o cinema se compõe igualmente de modos de produção, de circuito exibidor, de distribuição, de mecanismos de fomento, de ideologias e modos de governo. Um segmento a respeito da esquerda em Porto Alegre se insere de modo abrupto na montagem, e não ajuda a compreender em que contexto social, histórico e político esses filmes surgiram. Parecem ter brotado por geração espontânea.

A própria designação de pessoas e filmes soa insuficiente: os trechos de filmes não ganham letreiros com nomes, datas e realizadores, cuja descrição aparece somente nos créditos finais. Os entrevistados recebem nomes, mas não funções: os espectadores saberiam qual deles é um cineasta, um pesquisador, professor, diretor de fotografia? É curioso perceber as prioridades do criador ao elaborar uma obra que, claramente, gostaria de ter incorporado mais elementos do que conseguia, e que parece ter sido efetuada sem o devido amadurecimento (cinematográfico, não acadêmico).

Por fim, resta a impressão agridoce de se deparar com um filme careta sobre pessoas ousadas. Por que, até hoje, os diretores não pensam na importância evidente de corresponder o tema à forma? Como o mergulho em criadores de Super 8, em diretores que radicalizaram o sistema, mudaram as formas, criaram um modo de produção novo, pode se encaixar nos moldes limitados dos talking heads tradicionais, próximos da reportagem televisiva? Sim, Um Certo Cinema Gaúcho de Porto Alegre traz bastante informação, e representa uma bela aula de cinema. Resta pensar se esta seria a função de uma obra de arte.

Um Certo Cinema Gaúcho de Porto Alegre (2023)
5
Nota 5/10

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