Um Dia Antes de Todos os Outros (2024)

Vontade de afeto

título original (ano)
Um Dia Antes de Todos os Outos (2024)
país
Brasil
gênero
Drama, Comédia
duração
73 minutos
direção
Fernanda Bond, Valentina Homem
elenco
Clarissa Pinheiro, Marianna Bittencourt, Elvira Helena, Geandra Nobre, Ruth Mariana
visto em
13º Olhar de Cinema — Festival Internacional de Curitiba

O início deste longa-metragem desperta preocupação. Na primeira cena, um grupo de jovens observa o despertar do dia. Todos estão eufóricos: “O sol está nascendo! O sol está incrível! Bora tirar uma selfie com esse céu lindo!”. Eles pulam, se abraçam, comemoram por algum motivo desconhecido. Logo estarão trocando piadas internas, entre gírias LGBTQIA+ e provocações adolescentes. Na cena seguinte, uma mulher água as plantas e conversa com cada uma delas, chamando-as pelo nome. Inclusive, elogia os bebês em cada vaso (as novas folhas crescidas de um dia para o outro).

Um Dia Antes de Todos os Outros parte de algo muito próximo da paródia de uma esquerda folclórica, cujas pautas identitárias e ecológicas as levariam a se desconectar de problemas palpáveis do dia a dia. A filha reclama de ter que pegar o ônibus e ver a mãe, embora não tenha mais nada a fazer naquele dia. Entre imagens tremidas de rostos, os colegas basicamente reproduzem clichês esperados da comunidade queer. É possível que estas cenas de coletividade procurem a naturalidade de Corpo Elétrico ou Uma Paciência Selvagem me Trouxe Até Aqui, entretanto, estão mais próximas de uma sátira destes mesmos filmes.

Aos poucos, o tom se acalma, deslocando-se da euforia ao realismo social. O humor continua presente, porém, dissipando a possibilidade de ridicularizar seus protagonistas. Entretanto, as configurações ainda mantêm o sinal de alerta: afinal, Marli (a talentosa Clarissa Pinheiro) constitui a típica figura da empregada doméstica nordestina, engraçada e um pouco atrapalhada, além de ignorante e propensa a falar sem parar. É óbvio que personagens com tais configurações podem existir, tanto na vida quanto na arte. Em contrapartida, remetem à construção caricatural, e um tanto depreciativa, de programas humorísticos e telenovelas brasileiras.

Uma singela introdução a respeito de importantes temas que lhe servem de panos de fundo, ao invés de objetos de estudo.

Decorrem igualmente das telenovelas os diálogos insistentes, encarregados de evitar o silêncio a todo custo, e repetir nomes para os espectadores conhecerem os participantes de diversos núcleos. “Tudo bem, Dona Iara?”. “Por que essa cara, Dona Iara?”. “Ih, não gostou da música, Dona Iara?”. “Ficou linda com essa roupa, Dona Iara!”. “O que é isso, Sofia?”. “Como assim, Sofia?”. “Por quê, Sofia?”. Conforme insistem na nomenclatura, as falas se distanciam do real. Que pessoas conversam com a própria filha, ou com a patroa de décadas, de tal maneira em uma interação verossímil?

O projeto desperta a impressão de ter sido realizado às pressas, sem a oportunidade de limpar exageros, podar repetições, intensificar a fluidez das cenas. Trata-se de uma obra caseira, no sentido estrito do termo — passada quase inteiramente dentro de casa, com poucas personagens, poucos conflitos, temporalidade restrita. O conceito, destino a driblar restrições orçamentárias, poderia gerar resultados mais instigantes caso, em primeiro lugar, explorasse melhor o espaço e sua relação com os imóveis vizinhos. No entanto, as mulheres jamais passeiam pelo apartamento ou aproveitam suas diferentes partes. Com exceção do plano dos assobios, a direção de fotografia evita explorar as divisões de cômodos em suas composições.

Em segundo lugar, a clausura poderia intensificar os processos. O único dilema de Marli, da filha Sofia (Marianna Bittencourt) e da melhor amiga consiste em esvaziar o apartamento imenso para a venda. Ora, num salto temporal, o local já se encontra limpo, com os objetos em caixas. Apenas uma velocíssima limpeza de livros sugere algum esforço. A labuta prevista para muitos dias se resolve tão facilmente que as mulheres encontram tempo para conversar, brigar, festejar e ir à praia. Como teriam descido com a patroa branca na cadeira de rodas? Era algo com que estavam acostumadas? Tampouco testemunhamos a cena, ocultada em nova elipse. O filme nos priva de suas principais etapas.

Sobram carinhos verbalizados de maneira clara (“Eu te amo, eu te amo, eu te amo, eu te amo”. “Fala de novo!”), e questionamentos políticos ainda mais evidentes (a garota que se identifica como negra, para a surpresa da própria mãe). Um Dia Antes de Todos os Outros sabe bem quais temas deseja abordar, embora não tenha muita paciência para construí-los tijolo por tijolo. As cineastas preferem apresentar a casa pronta. Vemos o apartamento finalizado, a compra determinada, a decisão definitiva de partir para Olinda (da parte da mãe) e de ficar em São Paulo (da parte da filha). 

Ao que tudo indica, o dia mais interessante na vida destas mulheres seria aquele um pouco antes da celebração vista em imagens. No estágio onde se encontram, lhes cabe somente cumprir com decisões de terceiros, acatando a pressões externas. As personagens reagem muito mais do que agem. Em outras palavras, não são elas que determinam os rumos da trama. O quarteto (que inclui a patroa doente e emudecida) executa ordens do filho ausente, da compradora invasiva, dos transportadores que chegarão para levar as caixas). Elas consentem e fazem o seu melhor.

É possível que as diretoras Fernanda Bond e Valentina Homem tenham mirado um universo próximo daquele de Que Horas Ela Volta? (2015). Encontra-se em cena a protagonista-empregada, movida por uma adoração pouco questionadora em relação à patroa, além da filha politizada que chega para lhe balançar as certezas. No entanto, a discussão política assertiva de Muylaert está ausente nesta obra de pretensões mais modestas, que retira alguns elementos fundamentais, como Fabinho, seu sorvete, os vestibulares, as piscinas (ou suas simbologias equivalentes, é claro). Falta sugerir, através do espaço daquele apartamento, as relações de poder e classe com o mundo lá fora.

Resta uma vontade de afeto evidente, uma obra criada de maneira coletiva, onde os improvisos parecem ter sido determinantes. Um Dia Antes de Todos os Outros talvez precisasse de melhor amadurecimento do roteiro, do conceito, além de mais tempo de filmagem e finalização. Foi realizado com comprometimento e dedicação por parte das criadoras, ainda que teime em se distanciar de referenciais mais bem-sucedidos (Três Verões e Domingo também vêm à mente). Não terá discutido a contento o racismo, os fluxos migratórios, a luta de classes no Brasil. Entretanto, proporciona uma singela introdução a respeito de importantes temas que lhe servem de panos de fundo, ao invés de objetos de estudo.

Um Dia Antes de Todos os Outros (2024)
4
Nota 4/10

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