Com o sucesso da franquia O Exótico Hotel Marigold, o cinema britânico acaba de encontrar uma leve variação do mote “homem indiano de bom coração apresenta as maravilhas do afeto a idosos brancos”, no mesmo estilo feel good movie, combinando drama e comédia, e incluindo Judi Dench no elenco. O projeto da vez se chama Allelujah, trama situada dentro de um hospital geriátrico prestes a fechar as portas devido à falta de verbas. O melhor (e único) médico da instituição inteira é Dr. Valentine (Bally Gill), um sujeito indiano invariavelmente atencioso e dedicado.
Os personagens entram em esquemas maniqueístas, embora possam mudar para o lado simetricamente oposto conforme a narrativa avança. De qualquer modo, eles se dividem em bons ou ruins; dignos de prêmios ou da prisão; defensores radicais da saúde pública ou detratores de qualquer organização que não produza lucros. É evidente para qual lado o discurso pende, e quais personagens defende, em detrimento daqueles repudiados. A sutileza realmente não é o forte do diretor Richard Eyre.
No entanto, esta fórmula básica se vende ao espectador através do elenco prestigioso e dos diálogos repletos de tiradas irônicas. Jennifer Saunders, David Bradley e Derek Jacobi são plenamente capazes de brincar com as situações tragicômicas da instituição, a exemplo do homem preso a uma cadeira de rodas, mas ainda capaz de dançar, ou da mulher demente, porém ainda capaz de cantar. A solução de lucidez e poesia recorre invariavelmente à arte: o roteiro aposta em aulas de canto, literatura, e nas senhoras idosas que escondem suas habilidades cinematográficas — até se tornarem convenientes à trama, claro.
A certa altura, Allelujah parece trazer um comentário interessante acerca da comparação entre a velhice e a pobreza, efetuada pelo Estado e pelo senso comum. “Cure-a”, ordenam os familiares arrogantes de uma senhora (eles estão na categoria dos malvados), ao que o médico responde, com voz calma e atenciosa, que não existe cura para a velhice. A dificuldade de aceitar a morte enquanto algo natural, ao invés da consequência de um erro, poderia ser um tema interessantíssimo que o filme evita, talvez por sua complexidade. Cada vez que corre o risco de se tornar reflexivo, soa o alerta vermelho na sala de montagem e os criadores trazem a narrativa de volta à superfície.
A pregação virtuosa se encerra no mesmo ponto em que se iniciou: mais amor, por favor, e mais carinho com nossos cuidadores, por gentileza.
Isso vale também para o tratamento estético. Eyre opta por um conjunto acadêmico e protocolar de recursos, saturando a experiência com close-ups e com um trabalho de luz surpreendentemente chapado, sem textura, volume, nem variações. Pela dificuldade de explorar os cenários, a passagem do tempo e os demais personagens, o resultado soa como um telefilme pouco ambicioso, de orçamento limitado, e realizado de maneira apressada. Cenas importantes, a exemplo do leite oferecido pela enfermeira, ou das entrevistas conduzidas por repórteres locais, apresentam uma construção deficiente.
No entanto, a situação piora consideravelmente no terço final. Burocratas convertem-se de maneira abrupta ao poder do amor, defendendo que a vida humana deve vir acima dos lucros; uma figura bondosa se transforma em personagem perversa e perigosa; e uma filmagem caseira se torna prova irrefutável de um crime muito maior e mais duradouro. O projeto não tem tempo, nem vontade, de lidar com estas guinadas, entregando-as ao espectador e torcendo para que as compre da maneira como estão. Resta a impressão de que tenham faltado cenas à montagem.
Como se o discurso não estivesse claro o bastante, o médico-anjo quebra a quarta parede, em mais uma virada de perspectiva, e clama ao espectador: por favor, valorize a vida; por favor, reconheça o valor de enfermeiros e profissionais da saúde. Ele veste máscara de proteção, em referência à Covid, e trata de verbalizar aquilo que o filme já vinha demonstrando, de maneira claríssima, cena após cena. O cineasta transparece, neste instante, a pouca confiança depositada na inteligência do público, ou na potência das próprias imagens.
De qualquer maneira, a pregação virtuosa se encerra no mesmo ponto em que se iniciou: mais amor, por favor, e mais carinho com nossos cuidadores, por gentileza. É ingênuo que um diretor reputado se preste a um exercício tão simplório em termos de comunicação e posicionamento político. Eyre sabe o que defender, porém se mostra menos valente na hora de apontar dedos, ou oferecer alternativas. O comitê de empresários malvados não dá conta da complexidade de um sistema de saúde privado, nem da negligência dos governos, devidamente poupados da mensagem final.
Talvez por isso, a potência das atuações possua alcance limitado. O filme se perde em termos de tom (da comédia ao suspense e, por fim, à autoajuda), e oferece personagens unilaterais a grande atores. Fazendo uma pequena personagem, Judi Dench soa desperdiçada pela trama, e Jennifer Saunders jamais pode demonstrar a amplitude do imenso talento com comédia e drama. Falta um texto realmente afiado, sarcástico e digno das prestações destes veteranos do audiovisual britânico.
Se a situação é delicada com os personagens principais, ela se torna ainda mais grave com os coadjuvantes, restritos a uma única função ou “tipo”: existe a senhora bastante sexualizada, aquela que gosta de bater num prato, a colega apaixonada pelo senhor intelectual e assim por diante. Para um personagem, uma característica, não mais do que isso. Algo semelhante vale aos enfermeiros jovens: há o rebelde, ou aquela sorridente e otimista. Os atores não podem fazer milagres a partir de tiques cômicos tão simples. O filme sequer entrega a cada um a possibilidade de expandirem ou aprofundarem essas personalidades em novas gags.
Chegando ao cinema numa fase em que a crise de Covid aparenta estar controlada (ainda que não superada), o projeto soa anacrônico, e incapaz de dar conta dos desafios pós-crise. A bandeira “Apoie a saúde” possui seus méritos, ainda que lhe falte o principal: de que maneira devemos apoiar? Dar mais carinho aos enfermos importa, mas não basta, apesar da visão caridosa do Dr. Valentine. O que fazer desta pregação quase religiosa de valores (cuidar é bom, matar é ruim)? Que relevância este lembrete teria aos familiares que perderam entes à Covid-19, ou que foram frutos da negligência e carência de saúde por parte do Estado? Em meio a uma crise política global, apelar aos bons sentimentos consiste numa estratégia política e cinematográfica conformista.