Allelujah (2022)

Salve o sistema de saúde

título original (ano)
Allelujah (2022)
país
Reino Unido
gênero
Drama, Comédia
duração
99 minutos
direção
Richard Eyre
elenco
Jennifer Saunders, Bally Gill, David Bradley, Russell Tovey, Derek Jacobi, Judi Dench
visto em
Festival de Toronto

Com o sucesso da franquia O Exótico Hotel Marigold, o cinema britânico acaba de encontrar uma leve variação do mote “homem indiano de bom coração apresenta as maravilhas do afeto a idosos brancos”, no mesmo estilo feel good movie, combinando drama e comédia, e incluindo Judi Dench no elenco. O projeto da vez se chama Allelujah, trama situada dentro de um hospital geriátrico prestes a fechar as portas devido à falta de verbas. O melhor (e único) médico da instituição inteira é Dr. Valentine (Bally Gill), um sujeito indiano invariavelmente atencioso e dedicado.

Os personagens entram em esquemas maniqueístas, embora possam mudar para o lado simetricamente oposto conforme a narrativa avança. De qualquer modo, eles se dividem em bons ou ruins; dignos de prêmios ou da prisão; defensores radicais da saúde pública ou detratores de qualquer organização que não produza lucros. É evidente para qual lado o discurso pende, e quais personagens defende, em detrimento daqueles repudiados. A sutileza realmente não é o forte do diretor Richard Eyre.

No entanto, esta fórmula básica se vende ao espectador através do elenco prestigioso e dos diálogos repletos de tiradas irônicas. Jennifer Saunders, David Bradley e Derek Jacobi são plenamente capazes de brincar com as situações tragicômicas da instituição, a exemplo do homem preso a uma cadeira de rodas, mas ainda capaz de dançar, ou da mulher demente, porém ainda capaz de cantar. A solução de lucidez e poesia recorre invariavelmente à arte: o roteiro aposta em aulas de canto, literatura, e nas senhoras idosas que escondem suas habilidades cinematográficas — até se tornarem convenientes à trama, claro.

A certa altura, Allelujah parece trazer um comentário interessante acerca da comparação entre a velhice e a pobreza, efetuada pelo Estado e pelo senso comum. “Cure-a”, ordenam os familiares arrogantes de uma senhora (eles estão na categoria dos malvados), ao que o médico responde, com voz calma e atenciosa, que não existe cura para a velhice. A dificuldade de aceitar a morte enquanto algo natural, ao invés da consequência de um erro, poderia ser um tema interessantíssimo que o filme evita, talvez por sua complexidade. Cada vez que corre o risco de se tornar reflexivo, soa o alerta vermelho na sala de montagem e os criadores trazem a narrativa de volta à superfície.

A pregação virtuosa se encerra no mesmo ponto em que se iniciou: mais amor, por favor, e mais carinho com nossos cuidadores, por gentileza.

Isso vale também para o tratamento estético. Eyre opta por um conjunto acadêmico e protocolar de recursos, saturando a experiência com close-ups e com um trabalho de luz surpreendentemente chapado, sem textura, volume, nem variações. Pela dificuldade de explorar os cenários, a passagem do tempo e os demais personagens, o resultado soa como um telefilme pouco ambicioso, de orçamento limitado, e realizado de maneira apressada. Cenas importantes, a exemplo do leite oferecido pela enfermeira, ou das entrevistas conduzidas por repórteres locais, apresentam uma construção deficiente.

No entanto, a situação piora consideravelmente no terço final. Burocratas convertem-se de maneira abrupta ao poder do amor, defendendo que a vida humana deve vir acima dos lucros; uma figura bondosa se transforma em personagem perversa e perigosa; e uma filmagem caseira se torna prova irrefutável de um crime muito maior e mais duradouro. O projeto não tem tempo, nem vontade, de lidar com estas guinadas, entregando-as ao espectador e torcendo para que as compre da maneira como estão. Resta a impressão de que tenham faltado cenas à montagem.

Como se o discurso não estivesse claro o bastante, o médico-anjo quebra a quarta parede, em mais uma virada de perspectiva, e clama ao espectador: por favor, valorize a vida; por favor, reconheça o valor de enfermeiros e profissionais da saúde. Ele veste máscara de proteção, em referência à Covid, e trata de verbalizar aquilo que o filme já vinha demonstrando, de maneira claríssima, cena após cena. O cineasta transparece, neste instante, a pouca confiança depositada na inteligência do público, ou na potência das próprias imagens. 

De qualquer maneira, a pregação virtuosa se encerra no mesmo ponto em que se iniciou: mais amor, por favor, e mais carinho com nossos cuidadores, por gentileza. É ingênuo que um diretor reputado se preste a um exercício tão simplório em termos de comunicação e posicionamento político. Eyre sabe o que defender, porém se mostra menos valente na hora de apontar dedos, ou oferecer alternativas. O comitê de empresários malvados não dá conta da complexidade de um sistema de saúde privado, nem da negligência dos governos, devidamente poupados da mensagem final.

Talvez por isso, a potência das atuações possua alcance limitado. O filme se perde em termos de tom (da comédia ao suspense e, por fim, à autoajuda), e oferece personagens unilaterais a grande atores. Fazendo uma pequena personagem, Judi Dench soa desperdiçada pela trama, e Jennifer Saunders jamais pode demonstrar a amplitude do imenso talento com comédia e drama. Falta um texto realmente afiado, sarcástico e digno das prestações destes veteranos do audiovisual britânico. 

Se a situação é delicada com os personagens principais, ela se torna ainda mais grave com os coadjuvantes, restritos a uma única função ou “tipo”: existe a senhora bastante sexualizada, aquela que gosta de bater num prato, a colega apaixonada pelo senhor intelectual e assim por diante. Para um personagem, uma característica, não mais do que isso. Algo semelhante vale aos enfermeiros jovens: há o rebelde, ou aquela sorridente e otimista. Os atores não podem fazer milagres a partir de tiques cômicos tão simples. O filme sequer entrega a cada um a possibilidade de expandirem ou aprofundarem essas personalidades em novas gags.

Chegando ao cinema numa fase em que a crise de Covid aparenta estar controlada (ainda que não superada), o projeto soa anacrônico, e incapaz de dar conta dos desafios pós-crise. A bandeira “Apoie a saúde” possui seus méritos, ainda que lhe falte o principal: de que maneira devemos apoiar? Dar mais carinho aos enfermos importa, mas não basta, apesar da visão caridosa do Dr. Valentine. O que fazer desta pregação quase religiosa de valores (cuidar é bom, matar é ruim)? Que relevância este lembrete teria aos familiares que perderam entes à Covid-19, ou que foram frutos da negligência e carência de saúde por parte do Estado? Em meio a uma crise política global, apelar aos bons sentimentos consiste numa estratégia política e cinematográfica conformista.

Allelujah (2022)
3
Nota 3/10

Zeen is a next generation WordPress theme. It’s powerful, beautifully designed and comes with everything you need to engage your visitors and increase conversions.