Um Filme de Cinema (2023)

O cinema, sim, mas qual deles?

título original (ano)
Um Filme de Cinema (2023)
país
Brasil
gênero
Comédia, Drama, Infantil
duração
83 minutos
direção
Thiago B. Mendonça
elenco
Bebel Mendonça, Isadora Mendonça, Rodrigo Scarpelli, Eugênia Cecchini, Antonio Petrin, Alípio Freire, Carlos Francisco, Camila Urbano
visto em
Cinema

A vinheta de abertura deste filme apresenta imagens dos filmes mudos de Charles Chaplin. Na primeira cena, a professora pede um trabalho aos alunos pequenos, e a protagonista pede para fazer seu projeto no formato de um filme. Na cena seguinte, o pai cineasta está editando seu novo projeto, cercado por câmeras e quadros em referência a clássicos do cinema. A primeira canção da trilha sonora propõe uma corruptela do cinema mudo, transformado em “cinema-mundo” pelas vozes infantis. 

Este projeto planeja discutir cinema e fornecer uma espécie de introdução à história do audiovisual, em formato acessível aos pequenos. Assim, combina formação e educação, ou sensibilização à arte e ferramenta pedagógica. O cineasta Thiago B. Mendonça escala as próprias filhas nesta trama, na proposta de tornar a experiência ainda mais pessoal. Escala Rodrigo Scarpelli para a representação de si próprio. 

Esta aula-homenagem se dedica ao cinema da maneira mais explícita, direta e referencial possível: acumulando referências. Há citações diretas a Chaplin, Buster Keaton, Frankenstein, O Mágico de Oz, O Balão Vermelho, Viagem à Lua, A Chegada do Trem à Estação e tantos outros. Fala-se de filmes, filmam-se as pessoas, discute-se cinema em absolutamente todas as sequências, do começo ao final. 

O longa-metragem homenageia o trabalho cinematográfico enquanto o infantiliza. Acredita-se numa forma de arte tão lúdica que seria avessa à complexidade, ao teor provocador.

Talvez por lidarem de maneira menos direta com o cinema, a mãe e a irmã menor são deixadas em segundo plano, enquanto a transmissão de conhecimento entre pai e filha assume o protagonismo. Por trás da alegria de uma juventude vibrante, que pega a câmera e passa a integralidade de sua presença fictícia planejando histórias, o pai se transforma num cineasta em pane criativa. A ideia da filha ganha cores e vida. No entanto, nunca se sabe ao certo que projeto o pai, profissional experiente, está preparando. Do mundo colorido ao tédio em frente ao computador, desenha-se uma visão pouco estimulante da passagem à fase adulta.

Nesta overdose de citações e símbolos, a montagem decide introduzir incontáveis cenas de clássicos da sétima arte, capazes de dialogar com a situação de Bebel (Bebel Mendonça) em sua primeira criação cinematográfica. Logo, quando as crianças pegam um cachorro, voltamos a uma cena de Chaplin com um cachorro. Ao se mencionar as ondas no lago, imagens em preto e branco, de obras antigas, remetem às ondas. O pai, vestido de Chaplin, almoça com a filha, vestida de Chaplin, em frente a um quadro de Chaplin.

Pode-se questionar este uso dos clássicos enquanto repetição, ou mero eco da contemporaneidade. Os montadores estariam sugerindo que nenhum tema é novo, e a criação em 2023 reproduz aquela de cem anos atrás? Estariam equivalendo a criação profissional à brincadeira infantil? Sugerindo que o conhecimento é cíclico, e todas as obras dialogam entre si no tempo e no espaço? Que estamos condenados a viver da mesma maneira, e ainda somos os mesmos, como nossos pais? De certo modo, os flashes soam redundantes, além de óbvios devido à insistência. 

Esta teria sido uma bela oportunidade para utilizar obras alheias no intuito de provocar fricção, expandir sentidos, criar metáforas, ao invés de duplicar ações. Um Filme de Cinema incomoda pela maneira literal demais de compreender o amor ao cinema. Nunca se questiona o olhar, a maneira de ver a si mesmo e ao mundo, o decalque entre o real e sua representação, a importância do registro enquanto documento, a maneira de apreender os instantes, etc. Tampouco se debate técnica, aprendizado, conhecimento da linguagem, como fazia Os Fabelmans. Que diferença faz, para Bebel, filmar os coleguinhas em close-up ou num plano de conjunto? Como ela dirige os amigos para serem múmias? O roteiro resume a experiência ao filme enquanto único objeto e produto da arte. A história do cinema se torna uma história de filmes.

Enquanto isso, o teor singelo se converte em finalidade, ao invés de meio. O cineasta controla cada cena de cores pastéis, planos bem comportados e música brincalhona, para que jamais soe provocadora ou reflexiva em excesso. Imagina figuras paterna e materna incrivelmente gentis e desprovidas de conflitos próprios (é difícil acreditar em qualquer urgência relacionada ao não-projeto do pai). Adiante, resolve o paralelismo pai-filha num quiproquó dificílimo de acreditar, mesmo para os padrões da fantasia lúdica juvenil. 

Neste processo, o longa-metragem homenageia o trabalho cinematográfico enquanto o infantiliza. O retrato de um festival de cinema, o trabalho do editor, a crise do pai sentado diante do computador no mesmo enquadramento frontal e repetido, geram uma ideia de cinema-brinquedo. Acredita-se ainda numa forma de arte infantil tão lúdica que seria avessa à complexidade, ao teor provocador, às metáforas complexas. Vende-se o cinema enquanto mundo mágico e promissor aos pequenos, o que soa incompatível com a vontade de efetuar um retrato minimamente verossímil do ofício do pai.

Em paralelo, resta a impressão de que estes ícones servem pouco ao aprendizado de Bebel, e não se comunicam com o resto da trama. O balão vermelho flutuante e outras piscadelas ao público adulto restam apartados do universo da protagonista, como se fossem inseridos apesar dela. Embora transborde de afetos e inocência, a obra soa indecisa conceitual e narrativamente. Sim, todos amamos o cinema. Sim, seria ótimo promover uma ponte com o público infantil. Mas de que forma isso ocorre? Que aprendizados Bebel extrai das sessões sobre Chaplin, e como isso chega à sua obra final?

De que forma o contato um tanto asséptico e romantizado com um senhor em situação de rua (caso em que a ingenuidade soa politicamente contraproducente) lhe serve de conhecimento ou sensibilidade na visão de mundo? A montagem acumula músicas, inserts de filmes, pequenos conflitos (a busca pelo cachorro) mas jamais fornece nenhum objetivo preciso à filha, cujo filme se realiza quase por milagre, sem prazo nem dificuldades, e ao pai, cuja obra concluída aparece abruptamente em DVD. 

Para uma comédia dramática destinada a valorizar o cinema enquanto processo, falta justamente revelar os percalços, aprendizados, erros e tantas outras etapas que compõem o fazer cinematográfico, ao invés de imaginar, romanticamente, a aparição de uma obra-prima premiável, por geração espontânea. Afinal, o cinema é um mundo de sonhos, ou um universo de esforço e labuta? Uma possibilidade fácil e infinita, ou uma árdua reflexão e refinamento sobre as imagens? Deve-se filmar tudo e qualquer coisa, ou precisaria haver intencionalidade? O bom filme nasce do talento, do acaso, da dedicação? Um Filme de Cinema não sabe responder às suas próprias perguntas.

Um Filme de Cinema (2023)
5
Nota 5/10

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