O primeiro Ursinho Pooh: Sangue e Mel se sustentava quase inteiramente na curiosidade da premissa. De repente, os personagens gentis da infância se transformavam em assassinos cruéis devido ao abandono na floresta. O criador Rhys Frake-Waterfield trazia como único trunfo a singularidade da premissa, ou melhor, o oportunismo de aproveitar o instante exato em que os direitos dos personagens caíam em domínio público. Efetuou, assim, um longa-metragem apressado e retórico, cujo interesse residia em sua existência — no fator extrafilme, portanto.
O resultado, em termos artísticos, foi um desastre completo. O longa-metragem de 2023 apresentava qualidades amadoras de direção, roteiro, atuações, efeitos visuais. Demonstrava não apenas um desconhecimento do gênero quanto das regras básicas do audiovisual. Em acréscimo, transparecia uma carga de machismo e misoginia impensáveis em qualquer produção, mas, sobretudo, em um filme do século XXI. Tornou-se alvo de chacota, venceu os Framboesas de Ouro.
No entanto, ainda rendeu frutos (financeiros e de visibilidade) suficientes para justificar um segundo filme, até porque o primeiro foi baratíssimo e conseguiu ampla distribuição internacional — estamos discutindo sua existência no Brasil, afinal. Deste modo, Ursinho Pooh: Sangue e Mel 2 soa menos como uma continuação do que um recomeço, como se o criador dissesse “ok, sei que fiz um filme péssimo, vamos fingir que ele nunca existiu e recomeçar do zero” . Logo, muda a construção dos personagens, troca o conceito visual, substitui as máscaras, elimina relações estabelecidas com os vilões, tudo isso em somente um ano separando ambos os longas-metragens.
O acréscimo de dinheiro e seriedade não contorna uma falha básica: um filme não se tornará melhor caso você entregue mais recursos e melhores profissionais nas mãos de um diretor e produtor (Frake-Waterfield acumula as funções) que não tem a menor ideia do que está fazendo.
A segunda tentativa injeta mais dinheiro e cuidado na construção — pelo menos, em comparação com os padrões baixíssimos estabelecidos pelo original. Afasta-se ainda mais do mito de partida, esquecendo o Leitão, e ignorando por completo o mel cuja aparição se tornava motivo de risos anteriormente. A desculpa de que os bichos se converteram em feras assassinas graças rejeição é suavizada, para ceder espaço à tese improvável de uma modificação genética. O cineasta reconhece parte dos equívocos iniciais, partindo para vilões de maior gravidade, cuja conexão com o Pooh infantil se estabelece pela marca (o nome, a roupa, etc.) em detrimento do contexto lúdico da infância.
O principal mérito da produção de 2024 reside no trabalho com atores melhores, comprometidos, e dotados do mínimo de domínio técnico para a parcela dramática da narrativa. No papel de Christoper Robin, Scott Chambers leva a sério os dilemas psíquicos deste homem, com tamanha dedicação que aparenta ter se preparado para outro filme, melhor do que este. Aliás, a parcela de tristezas e traumas se mostra totalmente apartada do terror trash em termos de tom, como pertencessem a obras distintas, costuradas por descuido pela montagem.
A direção de fotografia se torna menos risível — apenas fraca, digamos. Absurdos persistem, a exemplo da presença do gelo seco no interior das casas, para produzir tensão e gerar o efeito de contraluz. A perseguição aos monstros na floresta escurecida também transparece a dificuldade dos fotógrafos em iluminar um amplo local noturno. Os criadores aparentam aprender a técnica do cinema enquanto fazem, testando-se num nível de sinceridade e humildade típico dos teatrinhos de escola infantil, apresentados aos pais no final do ano — com o diferencial que as peças das crianças não costumam viajar o mundo em palcos profissionais e render dinheiro, é claro.
Entretanto, o acréscimo de dinheiro e seriedade não contorna uma falha básica: um filme não se tornará melhor caso você entregue mais recursos e melhores profissionais nas mãos de um diretor e produtor (Frake-Waterfield acumula as funções) que não tem a menor ideia do que está fazendo. Enquanto cineasta, ele ainda ignora o be-a-bá de onde posicionar uma câmera, como enquadrar, como produzir dinamismo ou dirigir atores. A sequência da festa, e aquela da floresta à noite comprovam o despreparo impensável para um autor supostamente profissional.
O roteiro ostenta nível semelhante de precariedade. Personagens inconsistentes (sim, mesmo para o nível do terror trash), acontecimentos implausíveis, diálogos risíveis. Inventa-se um trauma de infância, com crianças raptadas, e então o sequestrador de décadas atrás surge na primeira tentativa de encontrá-lo. O homem confessa o crime de imediato, fornece provas de seus atos, traz novos nomes para incluir no rol das vilanias, e proporciona um áudio explicando as intenções do outro inimigo. As relações causais beiram a autoparódia.
A questão do ponto de vista permanece indecisa: não acompanhamos a trama pela perspectiva da vítima Christopher, nem do vilão Pooh, nem dos colegas de jornada. Novas criaturas assustadoras, como a Coruja, surgem abruptamente para despertar um medo genérico, sem causas nem consequências. A cena inicial, talvez a mais próxima do padrão estético do primeiro filme, reproduz o machismo atroz e o tratamento pavoroso das mulheres. A franquia visa ser levada a sério e respeitada enquanto terror, mas não aprendeu o suficiente com os inúmeros equívocos de tão pouco tempo atrás.
Agora, inclusive, acrescentam um imperdoável teor racista à mistura. Personagens negros surgem durante míseros segundos, apenas para serem os primeiros a morrer — algo que vale tanto para a cena inicial quanto para a interação com a policial feminina. Na cena da rave, adivinha? As garotas detestáveis que prejudicam Christopher são as únicas figuras negras do recinto, abandonadas à própria sorte, e mortas em seguida, é claro. Antes, Sangue e Mel desprezava todas as mulheres. Agora, volta o desdém especificamente às mulheres negras.
Por fim, a saga não evolui. Muda de uma produção de US$ 50 mil para uma tendo custado US$ 1 milhão. Caso alguém venha a dar mais milhões para os eventuais terceiro e quarto filmes, talvez tenhamos produções péssimas, embora endinheiradas. Enquanto os autores não estudarem o básico sobre o cinema, sobre o horror, sobre o mundo e a representação de seres humanos, não terão êxito na empreitada. Resta a singularidade de assistir ao mesmo projeto concretizado duas vezes em dois anos, fracassando amargamente em ambas as tentativas. O espectador assiste a um work in progress exibido e distribuído em salas, desfrutando das pompas que muitos filmes profissionais de verdade nunca receberam. Nosso circuito possui suas anomalias.