Wandinha (2022, 1ª Temporada)

Horror vs. Afeto

título original (ano)
Wednesday (2022)
país
EUA
gênero
Fantasia, Aventura, Comédia
duração
8 x 45 minutos
direção
Tim Burton, James Marshall, Gandja Monteiro
elenco
Jenna Ortega, Gwendoline Christie, Christina Ricci, Catherine Zeta-Jones, Luis Guzmán, Gwendoline Christie, Riki Lindhome, Jamie McShane, Hunter Doohan, Percy Hynes White, Emma Myers, Joy Sunday, Georgie Farmer, Victor Dorobantu, Moosa Mostafa, Daniel Himschoot, Iman Marson
visto em
Netflix

Existem duas personagens diferentes sob o nome Wandinha. Uma delas existe na teoria, e outra, na prática. Espertamente, a série se inicia com o ato mais divertido e cruel da jovem durante toda a temporada: o saco com piranhas, despejadas numa piscina repleta de garotos aterrorizados. A cena é fundamental para nos demonstrar do que a garota é capaz. No entanto, a seguir, ela jamais efetua ações semelhantes quando chega a Nevermore, escola destinada a alunos “monstruosos”. Seu comportamento é cínico, antissocial, porém jamais violento.

A heroína se descreve como alguém que ama funerais, adora membros decepados, diverte-se com a possibilidade da morte, vibra com um banho de sangue caindo do teto, comemora um incêndio criminoso na praça da cidade. No entanto, tamanhos prazeres fúnebres jamais passam ao ato: mesmo diante de uma possível cena de tortura a um colega, na segunda metade da narrativa, ela se interrompe antes de concretizar os maus-tratos. A violência lhe interessa enquanto ideia, nunca em prática. Conforme a trama avança, descobrimos uma Wandinha (Jenna Ortega) solidária, gentil, amorosa, capaz de abraçar, chorar por um colega em perigo e sorrir diante de acontecimentos positivos.

Logo, o projeto segue uma lógica comum à história de anti-heroínas ou vilãs, no caso, a sugestão de que seus atos reprováveis escondem uma pessoa disposta a amar, porém, sem saber como. Não por acaso, Wandinha é levada à terapeuta, faz novos amigos (contra a sua vontade), descobre o amor e passa a valorizar a família. O percurso oferecido à garota “diferente” se direciona à aceitação e incorporação norma. Ela se considera difícil e solitária, até se derreter pelo carinho incondicional oferecido pelas pessoas ao redor. Wandinha demonstra um comportamento intragável com a colega de quarto e os meninos da escola que, em contrapartida, continuam lhe oferecendo afeto cena após cena. A menina é vencida pela insistência.

Tamanho otimismo soa condizente com outras obras da Netflix, dedicadas ao discurso de inclusão pelo viés moral: ama-se o próximo (seja ele lobisomem, monstro, homicida) porque, no fundo, seríamos todos iguais. Politicamente, o recurso soa um tanto ingênuo, porque incapaz de questionar as raízes das desigualdades criticadas. No entanto, é aceito na contemporaneidade pela tendência a acolher pessoas negras (uma garota poderosa e de papel fundamental na trama), figuras LGBTQIA+ (um casal de mães) e outras representações de minorias. O desajuste social de Wandinha representa, em última instância, uma metáfora dessa distinção social.

A série incorre no problema fundamental de representar pessoas disruptivas e marginais por meio da estética mais dócil e domesticada que o serviço de streaming poderia oferecer.

Os roteiristas são generosos, até demais, com a adolescente. Além de fazerem o universo inteiro girar em torno dela — todos os conflitos, sem exceção, estão conectados à protagonista, mesmo aqueles de centenas de anos atrás —, oferecem-lhe uma quantidade impressionante de talentos. Wandinha é exímia esgrimista; detém conhecimentos avançados em botânica; domina as artes marciais; toca o violoncelo à perfeição; prova-se uma escritora de potencial; demonstra capacidades ímpares de análise e investigação; exibe uma oratória exemplar. Em paralelo, possui visões do passado ou do futuro, que simplesmente lhe contam o que ocorreu ou ocorrerá.

Como se todos esses facilitadores não fossem suficientes, o texto investe numa sucessão de explicações fornecidas à garota. Embora se intrometa em questões sigilosas e delicadas à administração da escola e da cidade, ela recebe de bom grado vários dados sigilosos, essenciais ao avanço da investigação. O xerife Galpin (Jamie McShane) conta à estudante informações sobre mortes na região; a diretora da escola, Larissa Weems (Gwendoline Christie), revela dados ocultos; os membros de uma seita secreta lhe dizem exatamente o que fazem no local; Mãozinha efetua parte considerável do trabalho sujo para ela. A temporada inicial consiste numa trajetória de investigação em estilo Sherlock Holmes, exceto pelo fato que as descobertas ocorrem para a adolescente, mas não necessariamente graças a ela.

A resolução dos conflitos se mostra fácil, até demais. Um embate traumático e antigo envolvendo os pais Mortícia (Catherine Zeta-Jones) e Gómez (Luis Guzmán) se resolve quase magicamente. Os amigos Enid (Emma Myers) e Xavier (Percy Hynes White) se irritam profundamente com Wandinha, até fazerem as pazes abruptamente e retornarem a ela, apesar da falta de iniciativas por parte da filha Addams. Ela é ameaçada de expulsão diversas vezes, embora isso nunca ocorra de fato. É afastada da delegacia mais algumas vezes, e retorna. Tudo ocorre ao redor dela, jamais por causa dela. Wandinha constitui, em primeiro lugar, uma observadora privilegiada, em posição análoga àquela do espectador. 

Esteticamente, o resultado é tão competente quanto comportado. As produções prestigiosas da Netflix contam com ótimos diretores de fotografia, junto a montadores, diretores e arte e compositores de alto escalão. Ao mesmo tempo, a empresa impede que o projeto seja ousado ou atrevido de fato. Mais uma vez, encontramos uma adolescência assexuada, uma pulsão de morte sem sangue (as pessoas mortas apenas somem de cena), banhadas em imagem de nitidez exagerada, e temendo a escuridão profunda. A montagem evita sequências longas demais, contemplativas, enquanto a direção de arte foge à inclusão de objetos e acessórios perturbadores.

O cartaz promete uma obra “da mente alucinante de Tim Burton”. Ora, é justamente o adjetivo que falta aqui: algo alucinante, subversivo, que ouse romper padrões estéticos e narrativos. A série incorre no problema fundamental de representar pessoas disruptivas e marginais por meio da estética mais dócil e domesticada que o serviço de streaming poderia oferecer. Wandinha se converte numa adolescente comum, preocupada com o primeiro beijo, com o baile da escola, com as brigas envolvendo a colega de quarto. Suas roupas pretas ainda são lindas, limpas e caras; ocupando dormitórios imensos e salas de aula luxuosas, na qual ninguém estuda de fato.

Há um caráter de assepsia incompatível com a promessa de submundo. O projeto tem medo de se sujar, de soar amedrontador ou incômodo. A família Addams sempre foi um projeto familiar, porém ancorado no horror, e na ideia interessante de que a monstruosidade reside no interior de cada família, devido ao amor dos pais, e não apesar dele. Aqui, em contrapartida, a menina é dissociada dos pais (Mortícia, Gómez, tio Chico e Pugsley são meros coadjuvantes, enquanto o Mãozinha se torna um funcionário escravizado). Os crimes que ela investiga, associados ao fundador da cidade, a um monstro poderoso e outras forças ocultas é tratado como mero quiproquó policial a ser resolvido pela descoberta do culpado. A referência ao monstro de Frankenstein soa ainda mais tênue do que o banho de sangue falso inspirado Carrie, a Estranha. O horror se limita à condição de referência, alusão pop, sem ser incorporado de fato à estética. 

O elemento que mais se aproxima do terror propriamente dito seria o monstro Hyde, de olhos arregalados e aparência cartunesca. Ali residem traços do estilo que Tim Burton demonstrou no início da carreira, quando o engraçado se encontrava com o sinistro, numa recusa afrontosa e extravagante ao realismo. Pena que o monstro apareça pouco, e possua função ínfima. Numa trama a respeito de monstruosidades, o principal adversário poderia representar mais do que uma fera selvagem.

Por fim, a primeira temporada sustenta a aparência de um adolescente rebelde, cheio de atitude e estilo, porém doce e inofensivo por trás das roupas e da cara de deboche. Pelo menos, Jenna Ortega se delicia com as tiradas irônicas, muito bem escritas, enquanto o elenco juvenil também se mostra bem dirigido, calibrado para coincidir monstruosidade com falta de afeto e aceitação. Eles são falhos, porém ternos, tímidos — mesmo os líderes da turma e das equipes esportivas revelam-se introspectivos no final.

“Somos todos monstros”, insiste o discurso. Gwendoline Christie e Fred Armisen, acostumados ao registro fantástico, se saem particularmente bem neste universo. Aqui, todos os inúmeros talentos envolvidos são podados ao limite do socialmente aceitável, do senso comum, do produto “para toda a família” — ou seja, malicioso, mas nem tanto; violento, mas nem tanto; divertido, mas nem tanto. Uma obra de consenso, dedicada uma figura de exceção. O audiovisual, assim como Wandinha, se domestica até encaixar nos padrões da maioria.

Wandinha (2022, 1ª Temporada)
5
Nota 5/10

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