José Carlos Novais da Matta Machado vive o ápice da ditadura militar. Este líder da Ação Popular precisa fugir com a esposa e os filhos, mudar de Estado a cada dia, cuidar para não ser perseguido. No entanto, sente que a repressão se aproxima, e talvez haja um traidor entre seus próximos. Hesita entre deixar as crianças com os avós; resiste às propostas do exílio no exterior; cogita mobilizar novas forças para dar um xeque-mate nos militares. Nutre as certezas simultâneas e contraditórias de que será capturado a qualquer momento, e que a revolução triunfará. Favorável ou não, o fim desta luta está próximo.
Esta descrição pode sugerir um filme de ação frenético, talvez no estilo de Alemão ou Tropa de Elite. Ele também poderia se apropriar das regras do suspense psicológico, e ainda do “filme de bastidores”. No entanto, a abordagem do longa-metragem surpreende muito. Isso porque não vemos a repressão. Nem as forças do Estado se aproximando. Nem os encontros da AP. Nem as discussões secretas a respeito dos próximos passos a tomar. Nem as conexões do espião que trabalha secretamente pela repressão. Os personagens dialogam a respeito de um cenário de ação, aventura e tensão constantes, embora jamais representados em imagens.
Zé sustenta uma aparência posada, autoimportante. Na ausência de conflitos explícitos, sobrecarrega a fala de um teor declamado demais.
Essa escolha se tornou uma constante entre os filmes selecionados no Olhar de Cinema Festival Internacional de Curitiba em 2023. Vários projetos exibidos se dedicam a narrar o mundo lá fora, mencionando verbalmente os conflitos, ações grandiosas, embates coletivos. Entretanto, permanecem no interior de um apartamento, imaginando as interações que não estão dispostos a concretizar. Depois de um policial que nunca vemos executando sua função, e de uma pastora que não prega (em O Policial e a Pastora); e de uma diretora que afirma executar inúmeras pesquisas de arquivo, apesar de não testemunharmos esta investigação (em Neirud), chega a vez da ditadura enquanto alusão.
Isso significa que o diretor Rafael Conde cola a câmera a Zé (Caio Horowicz) e à esposa Bete (Eduarda Fernandes), solicitando nossa constante boa vontade para supor dezenas de elementos citados sem indícios nem provas para tal. Eles afirmam estar passando fome, apesar de nunca vermos nada semelhante em imagens. Declaram constantemente, em tom de urgência, que os milicos estão se aproximando, embora não se saiba de onde provêm as informações. “Tanta coisa aconteceu, não sei por onde começar”, afirma o protagonista. Não parece. Ele e a esposa passam os dias tensos no apartamento, sem coordenar ações concretas, sem efetuar o que quer que seja. “Eu nunca pude decidir nada individualmente”, insiste o rapaz. Ora, em que momento ele tomou uma única decisão mediante consulta aos companheiros de luta?
Assim, o projeto se prende a um estranho faz-de-conta, uma sugestão pouco verossímil da tensão e da paranoia decorrentes da perseguição militar. A direção apresenta dificuldade em manejar elementos fundamentais da mise en scène, como o tempo e o espaço. Os protagonistas saem de uma casa à outra, de um Estado ao seguinte, sem que este deslocamento provoque qualquer alteração significativa na estética e nos rumos de ambos. É difícil saber quanto tempo se passou exatamente, algo que ajudaria a compreender o desgaste psicológico dos heróis. “Já fiz sinal duas vezes para este carro passar, mas ele não passa”, afirma o motorista que conduz o jovem durante uma fuga. Ora, não vimos estas tentativas antes. Para um roteiro baseado no princípio da gradação, teria sido fundamental oferecer indícios palpáveis de que a opressão estava, de fato, se aproximando.
Zé sustenta uma aparência posada, autoimportante. Na ausência de conflitos explícitos, sobrecarrega a fala de um teor declamado demais. Os poucos personagens centrais confirmam uns aos outros a força de suas convicções; profetizam a virtude da luta; a certeza da vitória. O texto está repleto de frases pomposas, e um tanto quadradas para a boca dos atores. “Eu fui formando minha percepção sobre a condição da existência humana”, explica Grauninha num encontro casual entre amigos. Estes jovens palestram, mesmo numa festa de aniversário. Existe um caráter didático na tentativa de mostrar a convicção dos militantes através da gravidade das falas.
Além disso, há ritmos e interações curiosas, estranhamente dosadas. No terço final, Zé explica a Grauninha: “Eu tenho 27 anos”. Ora, a amiga próxima, que conviveu muitos meses com o casal, ainda não sabia disso? Ela retorque: “Sou do campo, de Pernambuco”. Ele não sabia? Os personagens possuem a tendência estranha a se explicar, de modo a informar o público a respeito de dados básicos. Nota-se certa teatralidade nas poses, na rigidez dos corpos, na maneira empostada de se declarar aos demais. Está claro que Zé, Bete e Grauninha não são apenas três jovens, e sim símbolos responsáveis por transmitir toda a importância que os criadores atribuem ao tema. A ditadura foi algo sério, terrível, e profundamente consequente. Logo, o trio atua como se possuísse plena consciência, de antemão, a respeito do destino trágico que os aguarda.
Conde e sua equipe favorecem, na reta final, a tendência ao heroísmo e ao martírio do protagonista. O resultado se situa no meio do caminho entre a grande produção acessível, de caráter televisivo (há um teor de Globo Filmes na feitura, com seu scope elegante e uma direção de arte confortável) e o filme independente, avesso às regras clássicas (a leitura das cartas diretamente à câmera; a palestra do pai a uma plateia escura na cena inicial).
O longa-metragem ostenta um caráter burguês e comportado na elaboração cartesiana dos planos e da condução, embora busque representar uma rebeldia, uma fuga perigosa do sistema. Conta com atuações dedicadas (com destaque para a naturalidade de Horowicz com diálogos), um trabalho competente na utilização de objetos e figurinos (verossímeis, sem ser ostensivos). Em contrapartida, resulta recatado demais para um festival como o Olhar de Cinema, e menos tenso ou subversivo do que pretendia ser. Sempre questionaremos a representação convencional daqueles que fogem às convenções, ou ainda a domesticação em imagens de uma militância corajosa e feroz.