“A violência não é um espetáculo”, defende Cristiano Burlan sobre o drama A Mãe

Há sete anos o diretor Cristiano Burlan vinha preparando o projeto de A Mãe (2022), drama pensado especificamente para a atriz Marcélia Cartaxo. Na trama, uma vendedora ambulante da periferia de São Paulo sofre com o desaparecimento do filho. Ela parte em busca do garoto, mas perturba o equilíbrio delicado entre policiais e moradores da comunidade. No caminho, descobre a existência das Mães de Maio, grupo de mulheres que perderam os filhos para a violência de Estado.

O filme venceu o prêmio de melhor atriz no Festival de Gramado, e agora segue em exibição na 9ª Mostra de Cinema de Gostoso, onde foi apresentado na mostra competitiva a uma plateia de 600 pessoas em sessão ao ar livre, na Praia do Maceió.

O diretor Cristiano Burlan conversou com o público local e a imprensa, justificando suas escolhas de direção, explicando a relação pessoal com o tema e mencionando uma cena chocante, quando se revela o que realmente aconteceu ao garoto Valdo nas mãos dos policiais. O Meio Amargo conversou em exclusividade com o cineasta sobre o projeto:

A cidade de São Paulo é um personagem importante em seus filmes. Como escolheu esse bairro específico, e a profissão de Maria, vendendo produtos no centro da cidade?

Mesmo renegando que as coisas tenham um caráter de autoficção, muitas coisas ali aconteceram comigo. O teste no Corinthians, o ato de passar por baixo da catraca, são experiências pessoais. Eu fui camelô, meu pai foi camelô. A coisa do rapa é um universo pelo qual eu passei, e conheço muito bem, mesmo não conseguindo filmar como eu gostaria. Para filmar uma situação daquela, o ideal seria fechar o centro da cidade num domingo, chamar figurantes, mas não foi o caso. A gente tinha uma câmera e 300 pessoas atrás, tentando atravessar as filmagens. Mas este assunto, para mim, é primordial: tenho uma relação de amor e ódio com São Paulo. É uma cidade que me deu e me tirou muito. São Paulo é a grande personagem de todos os trabalhos que fiz até hoje. Talvez seja um pouco menos em A Mãe, mas isso vai voltar com ainda mais força no próximo filme.

Esta foi a sua produção de maior orçamento até agora. Como foi a experiência?

Não foi muito boa, para falar a verdade. Foi bom ver as pessoas receberem por seu ofício, e ter novos parceiros. Mas foi muito difícil. Posso dizer que foi uma escola de cinema. Primeiro, a minha expectativa era muito alta, e não chegar ali onde estavam as minhas expectativas, e aquelas de pessoas próximas, é algo bem difícil. Não posso nem reclamar: numa safra de filmes muito fortes, o nosso está sendo exibido em festivais, e vai estrear no cinema. Isso é uma exceção à regra, porque poucos filmes têm ocupado esses lugares. Não reclamo disso. Mas pensando por um lado positivo, foi uma escola de cinema, talvez a maior que eu já tive. Tinham coisas técnicas que eu realmente não sabia: a função de um segundo assistente de direção, de um terceiro assistente de direção. Mesmo dando aula de direção de cinema, eu não trabalho esse processo: dou aula de cinema clássico. Ali, eu entendi que existiam outras maneiras de fazer cinema.
Mas no final, foi uma experiência muito dura. Eu pensei que poderia filmar mais, que teria mais rigor nos planos. Continuei fazendo muitos planos, porque era um filme que precisaria de oito semanas, e foi filmado em quatro semanas. Tive muitas dificuldades. Mas acho que é um filme honesto. Se algum dia eu vier a trabalhar numa série, ou numa produção maior, já vou saber como funciona esta estrutura. Mesmo tendo feito quase vinte longas-metragens, eu não sabia como era trabalhar nesse lugar. Independentemente da câmera e da quantidade de pessoas, o que resta no final é a decisão de onde colocar a câmera, e o que responder ao ator quanto ele te perguntar alguma coisa. 

Fica também a questão do som. A Mãe é bastante silencioso, trazendo ruas, comércios e instituições de pouco ruído ou trilha sonora. Por que fez esta escolha?

São Paulo é uma cidade muito ruidosa, e ruído, para mim, é música. Para mim, era importante que o rosto de Maria estivesse em primeiro plano, então dei uma esticada entre o ambiente sonoro e o rosto. Os filmes têm seus vícios, herdados do cinema americano. O terror, por exemplo, tem seus vícios específicos de som. As cenas violentas, as cenas de ação, costumam ter seu desenho típico de som. Eu tentei subverter isso. Às vezes, penso que o filme é muito silencioso, mas percebo que, dependendo da sala e da qualidade do som, os efeitos aparecem melhor. Mas este é um filme mais silencioso, por opção, para que o som não sobrepujasse o rosto da Marcélia.

Houve muitas discussões a respeito da cena que revela o que realmente aconteceu ao Valdo. Este momento tira o ponto de vista de Maria para anunciar algo que ela nunca soube.

O roteiro tem apenas a perspectiva de uma personagem, e todos os outros são satélites. Ele foi construído assim. Eu tinha algumas questões extras que poderiam, ou não, entrar na montagem. Discuti com a co-roteirista, Ana Carolina Marinho, e decidi filmar para ter como opção na montagem. Para mim, era algo importante: o flashback não era apenas um flashback, mas uma memória. Em O Segredo de Brokeback Mountain (2005), o Ang Lee faz um movimento panorâmico para a direita, e tem uma volta no tempo de 15 anos ali. O luto te coloca nesse lugar: às vezes você está aqui, mas lembra de um detalhe da pessoa. Eu queria essa desconexão, para que parecesse mesmo um pensamento do passado. Algumas pessoas me perguntam: não seria mais forte para o filme não mostrar? Eu sabia disso. Mas para mim, era importante mostrar, por questões pessoais e políticas. Aí eu me lembro de uma frase do Orson Welles: “Um filme, quando se torna simples veículo de mensagem ideológica, política ou social, já nasce morto”. O ato de pegar uma câmera é um ato político. Essas coisas são importantes para mim. Eu entendo que talvez o filme tivesse outras potências e chegasse a outros lugares se eu não mostrasse. Mas não estava no roteiro assim.

Você sempre faz questão de representar a violência de maneira não espetacularizada. Tudo fica preso na garganta, não existe nenhuma cena de catarse para Maria, nem para o espectador.

A violência não é um espetáculo, né? Eu respeito a espetacularização, porque tem gente que filma isso muito bem. Diferentemente do Tarantino, por exemplo, que faz uma alegoria da violência. Eu fiquei muito incomodado em Tropa de Elite (2007), quando o menino é torturado. Aquela violência não precisa ser mostrada no cinema. Em Mataram Meu Irmão (2013), eu mostro das fotos da polícia científica, mas não fui eu que produzi aquelas imagens. Também não mostrei a minha mãe morte, embora exista uma foto dela morta na Internet. Eu mostro alguém vendo a imagem. Você se lembra de O Homem Urso (2005), quando o Herzog evita colocar o som do urso? Ele filma alguém ouvindo o som do urso, porque a ideia do monstro é muito mais apavorante do que o próprio monstro. Existe uma questão pessoal nisso: eu não chorei no velório da minha mãe. É como eu reajo ao luto, e a gente reage de maneiras diferentes: tem gente que chora, tem gente que ri, ou que não expressa nada. Seria mais fácil, mais espetacular, eu forçar a barra. Mas eu caminho numa linha tênue, e não quero transformar o filme num melodrama barato. Meu temperamento é assim.

Você sempre falou sobre a importância das Mães de Maio neste filme, mas elas aparecem de maneira bem pontual, mais como símbolo do que como personagens. Por quê?

Seria muito pesado. Era insuportável de assistir. Tem um depoimento de uma mãe, falando que perdeu três filhos em um ano. É insuportável, e as pessoas sairiam pesadas demais da sessão. Por isso eu discordo quando me dizem o filme que tem um tom de documentário: para mim, é ficção. A realidade é mais poderosa, mais atravessadora. Isso não caberia dentro de um filme. Na cena da delegacia, por exemplo, Maria era presa. Eu filmei momentos melodramáticos, mas não coloquei. Seria esquemático demais. Não sei se é questão de maturidade ou não, mas tem coisas que a gente entende no cinema. A capacidade cognitiva de quem assiste ao filme percebe aquilo ali. Quem explica demais não respeita a sensibilidade de quem está vendo. Mas eu sei que estas são as minhas escolhas, e pago um preço por elas.

O diretor Cristiano Burlan. Foto: Rogério Vital

Como dirigiu Marcélia Cartaxo? Você costuma se adequar às necessidades e estilo dos atores, ou tenta impor um método prévio a eles?

Não sou eu, nem ela, mas o que o filme pede. A Marcélia teve essa maturidade, e hoje em dia, eu tenho mais, depois de ter feito filmes. É menos uma questão de ter técnicas e métodos, ou de conhecer o estilo do ator, mas um entendimento desta matéria. Também é importante correr riscos: às vezes eu não pedia a ela para ser mais contida, mas conduzia de modo a sugerir isso, e depois, dei liberdade para ela extravasar. Mas o material e o filme vai nos dizendo o que ele pede. Não sei se fiz escolhas certas ou erradas. Este roteiro vem de um projeto de sete anos. Provavelmente, se eu filmasse hoje, faria escolhas diferentes.

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