A Mãe (2022)

Corte seco

título original (ano)
A Mãe (2022)
país
Brasil
gênero
Drama
duração
90 minutos
direção
Cristiano Burlan
elenco
Marcélia Cartaxo, Helena Ignez, Mawusi Tullani, Henrique Zanoni, Dunstin Farias, Rubinho, Anna Carolina Marinho
visto em
9ª Mostra de Cinema de Gostoso (2022)

Certo dia, uma mulher trabalhadora da periferia de São Paulo perde o filho. O garoto simplesmente não volta para casa, e devido à violência policial ao redor, supõe-se logo que tenha sido assassinado. Esta certeza implícita, que não decorre de uma investigação, nem de provas concretas, constitui a primeira brutalidade de A Mãe. Quando Valdo desaparece, Maria recebe dos vizinhos e das autoridades o conselho para esquecer o caso, seguir a vida, não perturbar as pessoas com perguntas. Senão, criaria mais problemas para ela e para a comunidade. A aceitação pacífica que se espera de uma injustiça constitui um dos motores deste filme frio.

Outros motivos para sustentar esta impressão provêm da maneira como Cristiano Burlan registra o périplo de Maria (Marcélia Cartaxo) que, inconformada e incapaz de realizar o luto, bate de porta em porta, da escola à delegacia, em busca de provas (de vida ou morte) do jovem. O cineasta trabalha com um estilo frontal de filmar, utilizando pouquíssima trilha sonora ou demais elementos capazes de dar vazão aos sentimentos da heroína. Ele prefere o grito e o choro presos à garganta (da atriz e do espectador) ao invés de construir um libelo emotivo contra a brutalidade policial.

Curiosamente, tamanha rigidez implica numa aparência de artificialidade, para uma narrativa tão afeita ao naturalismo. As sequências soam posadas: a protagonista visita escolas, delegacias, comércios, onde nunca existem outras pessoas pelos corredores, ruídos ao redor, e os funcionários estão sempre à sua espera para atendê-la ou dispensá-la. Dentro do ônibus, o enquadramento já espera pela chegada de uma pessoa ao lado de Maria e, adiante, quando os policiais entram na casa desta vendedora ambulante, o enquadramento está esperando por todos num canto do cômodo, numa grande angular, para abarcar o máximo possível de interações em plano fixo.

Não há lugar para excessos, improvisos, metáforas capazes de representar o absurdo da situação. O drama se move como um filme de ação, onde os gestos são exteriorizados, e o espectador acessa apenas aquilo que a mulher contida expressa por si mesma.

Assim, as conveniências diluem a potência da dramaturgia que se pretende humanista. Não há lugar para excessos, improvisos, metáforas capazes de representar o absurdo da situação. O drama se move como um filme de ação, onde os gestos são exteriorizados, e o espectador acessa apenas aquilo que a mulher contida expressa por si mesma. Até por isso, as raras cenas de gritos na delegacia soam inverossímeis, enquanto a montagem segura a interação alguns segundos antes de cortar, como se esperasse pelo acontecimento de uma nova faísca que não vem. 

Graças à estrutura “uma cena — uma ação — um personagem visitado por Maria”, a mise en scène apresenta dificuldade em criar dinamismo no interior de cada enquadramento. A montagem reflete esta limitação quando teima em colar enquadramentos semelhantes, de ângulos improváveis, e que chamam atenção excessiva ao corte, ao invés de facilitarem a fruição de cada encontro da mãe com seus possíveis algozes. Os zooms-ins na heroína são expressivos, ainda que revelem pouco dos espaços e dos sentimentos dela. Embora o projeto siga o périplo desta mulher pobre, ele não consegue efetivamente acompanhá-la. Pelo contrário, filma-a de longe, sem real envolvimento.

Logo, o luto e a luta resultam cerebrais, mecânicos, desprovidos de investigação psicológica. A direção evita trabalhar a dor desta mulher, deixando toda a responsabilidade ao rosto expressivo de Marcélia Cartaxo. Em paralelo, tampouco ilustra a passagem do tempo, algo fundamental na trama de uma pessoa desaparecida. Quando uma canção enfim chega à trilha sonora, no terço final, percebemos o quanto fazia falta, até então, alguma intromissão mais pessoal do diretor. O mesmo pode ser dito de um giro em 360º, quando o passado e o presente se unem num único plano. O projeto poderia se beneficiar muito de mais ousadias como esta, ou seja, tentativas poéticas de ilustrar Maria por seus sentimentos, além de um mero corpo em deslocamento pela cidade de São Paulo.

Na ausência do intimismo, as passagens soam protocolares. Nem uma atriz do calibre de Marcélia Cartaxo consegue justificar a atitude de uma mãe esperta, com décadas de vivência numa comunidade pobre, e que sequer desconfia que os policiais possam ter sido os assassinos de seu garoto, recorrendo à mesma polícia para ajudá-la. O desespero justifica medidas pouco racionais, é claro. No entanto, falta representar tal desespero capaz de explicar suas atitudes. O grupo das Mães de Maio também surge de maneira tão discreta que jamais se converte em personagem, nem surte efeito na trajetória da protagonista. 

Em paralelo, diálogos como “A ditadura nunca acabou. A ditadura só vai acabar com o fim da Polícia Militar” soam verdadeiras e importantes, porém deslocadas no contexto, tornando-se frases de efeito. Mas talvez a principal surpresa provenha da sequência final. A Mãe constrói sua narrativa inteira em torno da perspectiva desta mulher hermética cujo rosto e corpo ocupam 80% das cenas. Ora, na conclusão, o longa-metragem revela abruptamente ao espectador — desta vez na condição de voyeur — o que realmente ocorreu com Valdo, de maneira brutal e literalmente inconsequente. Na hora de terminar, o filme abandona o ponto de vista de Maria, e abandona Maria por completo, para adotar um olhar onisciente tardio.

É possível que Burlan estivesse procurando, através desta linguagem, uma maneira crua de retratar uma situação crua. O diretor experiente, que já representou diversas tragédias no cinema, inclusive relacionadas à sua família, evita a todo custo transformar a morte em espetáculo empolgante para as massas — felizmente, estamos muito longe de Cidade de Deus e Tropa de Elite. O foco, aqui, parece se encontrar precisamente na naturalização da barbárie, nos silêncios coniventes ao redor de Maria. Ora, apesar de se louvar a ausência de sentimentalismo, falta ao projeto um interesse real nesta protagonista. Ela se torna, aqui, um exemplo de caso. A Mãe demonstra maior interesse em denunciar uma situação inaceitável do que em permanecer junto à mulher devastada. 

A Mãe (2022)
5
Nota 5/10

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