Sofia Foi, a história de “uma pessoa de classe média que perde privilégios e não sabe pedir ajuda”

Desde suas primeiras exibições, tanto no prestigioso FID Marseille quanto na Mostra de Tiradentes, Sofia Foi tem provocado reações fortes no público. Isso porque o drama dirigido por Pedro Geraldo mergulha em sensações de tristeza, abandono e solidão, sem esclarecer todos os detalhes do percurso de sua protagonista, Sofia (Sofia Tomic).

A trama gira em torno desta estudante universitária, em um dia determinante de sua história. Sofia já desistiu dos estudos, está prestes a sair do apartamento onde mora. Além disso, sofre com a desilusão do fim de um namoro. Por isso, no dia que ocupa a narrativa, ela se afasta das pessoas, do cachorro, dos pertences, e começa a desaparecer lentamente diante dos olhos do espectador. O campus da USP, em São Paulo, se torna o palco principal para este momento de partida.

Geraldo e Tomic conversaram com o Meio Amargo a respeito do projeto tão especial, que estreia em 19 de setembro no cinema, pelo programa Sessão Vitrine Petrobrás:

Inicialmente, Sofia é vista à distância, até a câmera se aproximar dela. Por que existe este processo de aproximação gradual?

Pedro Geraldo: Para mim, o começo de filme é muito importante, porque representa um convite para quem está assistindo a entrar naquele universo. Como o filme vai para um caminho de muita intimidade com Sofia, queria que isso acontecesse aos poucos, de forma lenta. Não podia ser uma entrada brusca no universo desse personagem. A primeira cena foi montada desta maneira porque era importante que a gente visse a cidade, e Sofia de um tamanho quase insignificante, embora a narrativa seja inteiramente sobre esse personagem. Era preciso encontrar esta proximidade, esta importância de acompanhar o personagem durante uma hora.

A gente começou filmando um documentário, e depois, virou um exercício de improvisação e ficcionalização.

Sofia interpreta Sofia, e o filme foi apresentado em festivais de documentários, como o FID Marseille. Em que medida o projeto cruza a ficção com fatos?

Sofia Tomic: O filme é um híbrido, de certa maneira. A gente gosta de dizer que ele começou como documentário, e foi rumando à ficção ao longo dos anos. Filmamos há seis anos, e o projeto levou um bom tempo até passar por festivais em 2023. A montagem acabou abrindo mão de aspectos mais entrelaçados com a minha vida. Pedro entrou como ator, fazendo a pessoa que me expulsa de casa, em áudio. Pedro teve um interesse na minha figura, o contexto que eu vivia, a faculdade. Isso veio também da leitura sobre algumas tragédias no campus. De certa maneira, nasceu essa confiança em mim para guiar a narrativa. A gente começou filmando um documentário, e depois assistimos ao material, e escrevemos num roteiro formal o caminho que a personagem tomaria. Virou um exercício de improvisação e ficcionalização. Vivemos na ficção algumas coisas que metiam medo na realidade. Durante as filmagens, tanto eu quanto Pedro estávamos em período de mudança, então o aspecto da casa foi bastante importante para guiar a fragilidade da personagem.

Pedro Geraldo: A convite parte muito de quem Sofia era, seis anos atrás. O personagem precisava de pulsão, de algum movimento. Eu encontrei na Sofia aquela pessoa que estudava na FAU, trabalhava como tatuadora e passava por conflitos. Então a ideia nasceu colada em quem Sofia era. Mas a partir do momento em que a gente liga uma câmera e escolhe um espaço na universidade, tudo muda. Torna-se muito importante perceber como este corpo entra e sai de quadro, como ele se coloca, como ele olha. Muito veio do aparato da ficção, e da intenção de cada cena.

Existe uma predileção por espaços vazios. A USP parece uma universidade fantasma, sem falar nos pátios desolados, escuros.

Pedro Geraldo: Tinha o interesse de que o espaço fosse testemunha de Sofia. Era preciso dar atenção ao espaço, para que ele ficasse meio imutável. Sofia passa por ali, mas o local não muda devido à presença dela. Os espaços vazios ajudam a isolar a Sofia, e chamam mais atenção a ela. Em paralelo, destacam a arquitetura. O projeto é minimalista em termos de espaços e personagens.

Sofia Tomic: Gosto do exercício de pensar a Cidade Universitária enquanto cidade cenográfica. De alguma maneira, esse recorte cruza com a história, a fotografia, a narrativa.

Sofia escolhe se isolar. A gente não tenta explicar o porquê, embora tenham algumas pistas.

Como vocês descreveriam este momento de abandono da Sofia? É interessante que o “foi” do título possa estar ligado aos verbos “ser” ou “ir”. 

Pedro Geraldo: Sempre tive essa intenção de mostrar Sofia abandonando as coisas: ela abandona um cachorro no começo, depois deixa os materiais de tatuagem num canto. 

Sofia Tomic: Ao mesmo tempo, ela deixa rastros permanentes, como a tatuagem, e o coração na árvore.

Pedro Geraldo: Eu sinto que, neste momento, a Sofia escolhe se isolar. A gente não tenta explicar o porquê, embora tenham algumas pistas: ela não tem onde ficar, e existe a memória daquela parceira romântica. A gente não sabe quando foi, nem de que maneira acabou. Existe também a morte de uma pessoa próxima. Eu vejo o filme como um processo da Sofia em se retirar das relações pessoais e do mundo. A gente filmou a cena da tatuagem no dia da visibilidade lésbica, seis anos atrás, e neste momento dá para ver que Sofia é próxima da garota que está tatuando. Mas, no plano seguinte, ela está sozinha. Por isso, não entendo que o mundo a abandonou, mas ela abandonou o mundo. Ela precisou se isolar, e passar por essa trajetória.

Sofia Tomic: Você escreveu na sua crítica que é aterrador acompanhar uma personagem durante todo um longa-metragem e ainda não conhecê-la bem no final da sessão. Existe este aspecto hermético dela, que diz respeito ao momento de retirada. A gente também não queria vitimizar a personagem. Já ouvimos muitos comentários do tipo “Que pena que não existia ninguém para ajudar esta pessoa”. Mas a gente responsabiliza Sofia pela decisão de não responder à pessoa do apartamento. Ela ainda teria um sofá ali dentro, então não se trata de uma pessoa sem lar pra morar, completamente rejeitada pelas pessoas ao redor. Sofia é uma pessoa de classe média que perde privilégios e não sabe pedir ajuda.

Inclusive, o namoro dela no passado deixa claro que Sofia teve laços importantes e afetuosos. Não se trata de uma pessoa que sempre ficou à margem.

Pedro Geraldo: Sempre existiu este conceito de fazer com que Sofia fosse muito mais vista do que compreendida. O título “Sofia Foi” também fala sobre quem está assistindo: “Sofia foi vista pela última vez…” — pelo espectador, inclusive. A gente passa este tempo inteiro com ela, mas na condição de testemunhas, sem encontrar motivos, significados, razões.

Sofia Tomic: Gosto de pensar que estamos assistindo ao último dia da vida de alguém. O que seria possível deduzir sobre alguém a partir dos pequenos registros das últimas pessoas que tiveram contato com ela? Afinal, o caso não foi solucionado. Por isso, o resultado é um filme lacunar, uma história que não se completa. Existem muitos espaços vazios, muitas dúvidas não respondidas. De alguma maneira, a história se amarra enquanto somatória de relatos possíveis de angariar de um dia sobre o qual não temos nenhuma certeza — nem para nós, que fizemos o filme. Essas questões ainda são motivo de debate entre a gente, sobre o que aconteceu, para onde ela foi, como foi. 

O que seria possível deduzir sobre alguém a partir dos pequenos registros das últimas pessoas que tiveram contato com ela? Afinal, o caso não foi solucionado.

Na Mostra de Tiradentes, algumas pessoas diziam se tratar de um “alerta sobre saúde mental”, mas nunca me parece que ele efetivamente defenda uma causa, ou estruture uma mensagem a respeito.

Pedro Geraldo: É muito difícil dizer que o filme seja sobre alguma coisa em especial. São muitas camadas e tópicos abordados. Ele é sobre a vida, num sentido geral. Acompanhamos um momento da vida de alguém, sem que o espectador seja preparado para isso. É mais um convite para estar perto de alguém, e estar pronto para deixá-la ir. Não consigo dizer que “é sobre a vida universitária”, “é sobre uma vivência lésbica”, “é sobre a saúde mental”. Toda essa complexidade compõe o momento deste personagem, num limbo entre adolescência e vida adulta, entre estudo e trabalho. 

É importante para vocês pensar Sofia Foi dentro da perspectiva de uma cinema queer?

Pedro Geraldo: É bem importante, porque a gente escolhe para o papel principal, e para interpretá-lo, alguém que tem essa vivência.

Sofia Tomic: O olhar de quem faz o filme também parte de uma vivência queer.

Pedro Geraldo: Vi nas redes sociais um questionamento sobre o que um filme precisaria ter para ser considerado um filme trans. Precisaria ter alguma escolha de dramaturgia? Uma diretora norte-americana que eu adoro, a Jessica Dunn Rovinelli, respondeu: “Basta ter uma pessoa trans dirigindo, e uma pessoa trans atuando”. É isso: para a gente, é muito importante estar relacionado a um cinema queer, porque as pessoas que fizeram o filme são queer. Ao mesmo tempo, o filme toca em aspectos formais e narrativos que adicionam à nomenclatura queer.

Sofia Tomic: A gente tem cinema queer desde que o cinema existe, na verdade. Quando a gente filmou, nossa relação com o cinema queer era diferente daquela de quando finalizamos. Talvez se a gente tivesse finalizado lá atrás, esta tivesse sido uma questão entre nós. Mas existe um cansaço de estipular que toda narrativa queer gire em torno do direito de ser queer. Alguns filmes lançados recentemente, conscientemente ou não, trazem a vivência queer como um dos aspectos da vida do personagem, sem precisar ser algo central para levá-lo a se movimentar. Os conflitos não ocorrem por conta disso, embora a personagem seja queer. Esse filme trabalha estas camadas, mas não se atém a isso. Ele busca um recorte mais amplo ou, melhor que isso, ele evita fazer um recorte.

Existe um cansaço de estipular que toda narrativa queer gire em torno do direito de ser queer. Os conflitos não ocorrem por conta disso, embora a personagem seja queer.

O filme adota alguns recursos incomuns no circuito comercial, como sobreposições, close-ups extremos no rosto da personagem, além do próprio formato da imagem, próximo do quadrado.

Pedro Geraldo: Isso vem de uma cinefilia que acompanha a gente há um bom tempo, desde os estudos de cinema. Esta carga cinéfila foi se misturando dentro da gente, com tantos filmes e fotografias que a gente viu. Sofia Foi nasce como documentário, a equipe era basicamente eu e Sofia, e tinha uma escala pequena, portanto. A estética foi se construindo de modo intuitivo. Era importante encontrar a distância entre a câmera e Sofia. Essa foi a coisa mais difícil, mas também a mais determinante para a estética. A gente tem alguns momentos de muita proximidade, quando o rosto dela nem cabe na imagem — o enquadramento corta a Sofia. Em outros momentos, estamos bem distantes, como no começo, e na USP. Quais momentos pediam para a câmera estar perto, e quais não teriam essa exigência? As definições vieram daí. A gente não usou nenhuma luz: este foi um exercício de encontrar a luz da USP, e também utilizar a escuridão, que é um componente forte do filme. A minha intimidade com Sofia, e dela com os personagens e o espaço, determinou estas escolhas. As sobreposições nasceram no diálogo com a montadora, a Manoela Cezar. Eu comecei fazendo este processo, mas senti que a montagem estava muito dura. Era preciso incorporar algo que eu não conseguia trazer, porque estava muito apegade ao material. A Manuela tem uma abordagem mais onírica, habituada a trabalhar com sonhos. Ela trouxe as sobreposições, que foi ótima para a confusão entre temporalidades, memória, sonho, realidade.

Sofia Tomic: Foi interessante a gente ter começado com a cena documental, no dia da tatuagem, porque existe uma relação diferente de onde colocar uma câmera, como construir a cena, com começo, meio e fim. Isso deu tempo para que Pedro pudesse inclusive experimentar, em relação à distância da câmera, e chegar até a linguagem do filme. A ideia do documentário, de captar uma ação que nunca deixa de acontecer, talvez tenha dado mais tempo para a gente entender isso.

Pedro Geraldo: Deu tempo para a gente encontrar o filme, na verdade. Isso porque ele não partia de algo pré-pensado 100%, moldado inteiramente. A escolha de fazer em duas pessoas era justamente para a gente sentir o tempo juntes, ver o material juntes e conversar. Encontramos a forma do filme enquanto a gente fazia.

Mas quando a gente pensa que o caminho será leve e onírico, chega uma trilha sonora de rock alto, distorcido, áspero.

Pedro Geraldo: A gente teve muitas tentativas de outras trilhas. Como tivemos muito tempo de montagem, deu para testar até encontrar o tom certo. A trilha variava entre momentos mais sublimes (a trilha do final, melancólica, que já prepara o espectador para a saída da sessão, e te dá um abraço) e momentos pesados (a festa, o rock), para mexer um pouco com a sensorialidade de quem assiste. O rock transmite a ideia de que as coisas estão incertas, algo grave pode vir a acontecer. Já a festa trazia algum peso, apostando num funk, que costuma ser mais divertido e solto. Mesmo assim, usamos de maneira sombria.

Estamos vivendo tanto a surpresa surreal e maravilhosa de chegar ao circuito quanto nos deparando com essa ferida do cinema brasileiro.

Sofia brincou que talvez este seja o filme com menor equipe a ter um lançamento comercial. Como veem a importância de lançar Sofia Foi nas salas de cinema?

Pedro Geraldo: É uma surpresa para a gente; a ficha está caindo gradativamente. Antes de a gente ter uma distribuidora, a resposta das pessoas indicava que era possível este filme chegar ao público e se relacionar com elas de alguma forma. Este retorno muito emocionado depois das sessões já era algo significativo para a gente. Mas chegar às salas de cinema, com uma distribuidora, e dentro de um projeto interessante como a Sessão Vitrine, pode dar força e motivação para quem estuda cinema, e trabalha com cinema, de que é possível chegar no caminho da exibição comercial. Não é algo irreal, não é um delírio. Pode acontecer. Estou super feliz; não imaginava que isso fosse acontecer.

Sofia Tomic: É quase absurdo a gente chegar na sala de cinema, se a gente considerar tudo o que aprendeu na faculdade, e que acompanha no mercado. Eu trabalho em produtora de cinema, e começamos a estudar a possibilidade de virar uma distribuidora. Começamos a pesquisar a distribuição no ano passado, e os números são assustadores: mais de 90% dos filmes feitos no Brasil não passam de 6 mil espectadores, sendo que é um dos países que mais consome audiovisual no mundo. De alguma maneira, estamos vivendo tanto a surpresa surreal e maravilhosa de chegar ao circuito quanto nos deparando com essa ferida do cinema brasileiro, aberta desde a pornochanchada, quando o público esvaziou as salas e perdeu interesse pelo cinema nacional. Sofia Foi não é o típico filme que as pessoas encontram nas salas, ao mesmo tempo, tomara que seja uma surpresa boa para quem não está acostumado a este tipo de linguagem. Fico muito ansiosa e interessada em ver qual vai ser a resposta comercial do filme. Estamos trabalhando muito para chegar no máximo de pessoas possível — inclusive nos estudantes e quem vive uma experiência próxima da personagem, embora este não seja o único recorte que emocionou as pessoas. É o momento de uma alegria transbordante, junto a muita ansiedade. Estamos trabalhando pelo melhor.

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