A sexta edição da Mostra Quelly chegou ao fim com uma escolha ousada de curadoria. O último filme exibido ao público foi o colombiano Anhell69 (2022), dirigido por Theo Montoya. Não se trata de uma obra celebrativa, muito pelo contrário. O cineasta efetua uma viagem agridoce pela juventude queer de Medellín, com foco nos amigos do autor, quase todos falecidos em decorrência de drogas ou suicídio. Como pensar no futuro se o presente é tão desesperançoso?, ele questiona.
Termina-se, portanto, num questionamento pouco otimista acerca das possibilidades à nossa frente. Ao menos, o evento maranhense, de caráter engajado e corajoso, lança a reflexão sobre a sociedade que nos aguarda. “Como você se imagina daqui a cinco, dez anos?”, Montoya pergunta aos amigos, num teste de elenco para o filme que nunca aconteceu — pelo menos, não da maneira como ele o imaginava. Face ao desaparecimento sucessivo de seus atores e colegas, transformou o luto em tema. Fez um filme sobre a impossibilidade de fazer um filme.
A edição 2023 começou com um longa-metragem, e se encerrou com outro. No meio, foram oferecidos curtas e médias-metragens. Em comum, Anhell69 e A Rainha Diaba transparecem o desejo de viver intensamente, como se não houvesse amanhã. A líder da boca de fumo, interpretada por Milton Gonçalves no filme brasileiro, partia para o tudo ou nada quando descobria a traição de pessoas próximas. Terminava no nada: o filme se fecha na catarse de uma pilha de cadáveres empilhados. Em ambas as narrativas, quase todos os personagens sucumbem ao final.
Mesmo assim, Montoya e os personagens de Antônio Carlos Fontoura festejam, consomem drogas, fazem sexo. Incorporam uma marginalidade orgulhosa, em duas obras que citam as classes dominantes de modo distante, sem mostrá-las. Os bandidos dos anos 1970, no caso brasileiro, e os adolescentes dos anos 2020, no caso colombiano, possuem como experiência familiar apenas o suporte uns dos outros. Foram rejeitados de seus núcleos, e mantêm relacionamentos abusivos ou violentos com os companheiros.
Os personagens de Anhell69 citam com frequência a importância de viverem o tempo presente. Desconhecem o passado, e preferem não pensar no futuro. Esta postura hedonista caracteriza a seleção da Mostra Quelly 2023 na integralidade. Nenhuma destas obras visa retirar lições específicas das gerações anteriores para aquelas que chegarão. Os filmes duram o tempo de um orgasmo (Fluidité, Progressive Touch), ou de uma dança (As Inesquecíveis, Mon CRS).
Elas terminam, em sua maioria, sem indicar caminhos para os personagens no dia seguinte, e muito menos para o futuro próximo. Não importa. Que vivam agora, que sejam felizes neste instante precioso. Apelam tanto para a câmera lenta, na intenção de expressar a letargia e desconexão da realidade (vide a cena inicial de Panteras, a masturbação em Fluidité) quanto para a aceleração típica da contemporaneidade (a tecnologia perversa de Blinded by Centuries, a dança de Renata Carvalho em Corpo Sua Autobiografia).
É preciso que o tempo se acelere ou se retarde — em última medida, que ele drible o real, propondo uma experiência distinta do naturalismo indesejado, onde estes corpos são recusados. Os espaços também se reconfiguram, adquirindo ares fantasistas, próximos do terror ou da fábula — vide a casa cheia de estampas de onça em As Inesquecíveis, o cabaré romântico de Mon CRS, o fundo infinito com um tecido suspenso em Quinze Primaveras. Entre lutar para melhorar o real e se projetar na delícia de um mundo paralelo, as obras escolhem este último caminho.
A transexualidade e a identidade travesti dominaram a edição. Personagens trans, ou de sexualidade fluida, compõem os verdadeiros protagonistas da 6ª Mostra Quelly, com exceções notáveis de Mon CRS e Os Animais Mais Fofos e Engraçados do Mundo. Os curadores encontraram nas fronteiras entre gêneros e sexualidade a principal expressão do universo queer, rompendo com as histórias de amores e desamores gays, predominantes nos festivais LGBTQIA+. Ao invés da dúvida acerca de amar e ser amado, o foco se volta a existir e resistir, da maneira como se é. O amor-próprio se sobrepõe ao amor pelo outro.
Para identidades fluidas, linguagens fluidas. As narrativas se concentram na performance, na videoarte e no cinema experimental, o que significa romper com a binariedade ficção-documentário. Os títulos exploram subjetividades reais fazendo sexo simulado (Godasses Parte III), ou personalidades inventadas em sexo verídico (Progressive Touch). Às vezes, o real se encontra com o cinema de gênero (o horror em Panteras, a fábula em Quinze Primaveras).
O uso da película em Super 8 (As Inesquecíveis), ou do digital reconvertido (Fluidité), também serve para romper com a nitidez esperada da aparência profissional, polida, padronizada. Blinded by Centuries e Godasses Parte III: Jamal Phoenix se arriscam no digital de baixa qualidade enquanto afirmação política — a marginalidade também se encontra nas formas e suportes. Quanto mais os realizadores refletem acerca da estética capaz de representar estes indivíduos de exceção, mais potentes são os resultados. Os projetos clássico-narrativos possuem, em consequência, interesse reduzido num contexto tão potente.
A recorrência da narração-guia também chama a atenção. Quase todas as obras selecionadas contam com a introdução da voz do realizador ou realizadora, falando de si, de seus dilemas, sua visão de mundo. Alguns filmes são inteiramente narrados (Corpo Sua Autobiografia), ou se apoiam em longa explicação oral inicialmente (Panteras, Mon CRS) para introduzirem o espectador neste universo particular. Até por isso, as raras iniciativas desprovidas de explicação narrada — Progressive Touch, em particular — se sobressaem.
É possível que a voz represente uma tentativa suplementar de conferir protagonismo, e mergulhar no ponto de vista de personagens LGBTQIA+. Com a exceção de Mon CRS, os trabalhos selecionados elegem indivíduos queer enquanto protagonistas, e também na maioria dos papéis secundários. Dominam a imagem pelo corpo, mas também pelo som, através da voz. Raras vezes se escuta uma travesti narrando um filme, de modo que, neste sentido, a insistência nas falas em off transparece uma autoafirmação política.
Ao final, a Mostra Quelly ofereceu um espaço para se refletir a estética queer e o mundo visto por pessoas queer, em detrimento de tantas obras em que personagens gays, lésbicas, bissexuais, travestis e transgênero constituem meros objetos de estudo, na condição de figuras de lamento ou heroísmo. Os filmes da sexta edição não prestam homenagem a ninguém. Não citam heróis, mártires, nem carrascos. Preferem defender o ponto de vista de pessoas comuns, assim como muitos dos jovens cineastas se veem.
Enfim, resta um espaço para que artistas queer representem a si próprios, e para que o público queer se enxergue na tela, para além da romantização ou do fatalismo — dois elementos diretamente ligados à finalidade do afeto LGBTQIA+. Seremos salvos no final? Teremos mais segurança, mais direitos? Poderemos viver nosso amor com o bem o desejamos? Não sabemos, e isso não importa agora.
As figuras que ocuparam as telas do Teatro da Cidade de São Luís e do Teatro Cazumbá experimentam cada dia como se fosse o último. Não há felizes para sempre, pelo simples fato de que não existe “para sempre” neste raciocínio. Montoya defende, em Anhell69, um “cinema de descrentes, de marginalizados, daqueles que não pertencem a nada, nem ninguém”. O pequeno manifesto poderia se estender aos demais títulos, e à visão da curadoria em sua totalidade.
Uma liberdade empolgante, e também uma desesperança da precariedade, decorrem desta defesa. Por isso, a euforia e a melancolia convivem nesta forma de cinema extremo, radical. Um cinema de festa, do agora, do intenso, do prazer, do gozo. Caberá aos espectadores, na ressaca pós-festival, efetuar a reflexão acerca de tantas subjetividades lindas e tristes, admiráveis e rejeitadas.