Anhell69 (2022)

Morte e vida queer

título original (ano)
Anhell69 (2022)
país
Colômbia, Romênia, França, Alemanha
linguagem
Drama, Documentário, Experimental, Fantasia
duração
74 minutos
direção
Theo Montoya
elenco
Alejandro Hincapié, Camilo Machado, Alejandro Mendigaña, Julián David Moncada, Camilo Najar, Juan Esteban Pérez, Sharllot Zodoma, Víctor Gaviria, Theo Montoya
visto em
12º Olhar de Cinema (2023)

“Queria fazer um filme sem gênero, sem fronteiras. Um filme trans”. O diretor Theo Montoya parte de uma premissa ambiciosa. Alimenta a vontade de criar um projeto audiovisual sem saber ao certo como, nem onde chegará. Promove então um teste de elenco na faculdade onde estuda, buscando sobretudo os jovens queer, ou estudantes não-binários, dispostos a conversar sobre suas sexualidades. Eles interpretarão os personagens centrais de uma trama situada num mundo onde fantasmas convivem com os vivos, e fazem sexo com eles. A paixão por criaturas sobrenaturais se torna tabu, levando à perseguição de seus praticantes.

É claro que a intolerância contra aqueles que agem e pensam de maneira diferente, em função de seus afetos e sua sexualidade, funciona enquanto metáfora da homofobia e transfobia atualmente. A distopia proposta pelo cineasta, nunca realizada enquanto tal, simbolizaria a perseguição sofrida pelas identidades minoritárias numa sociedade conservadora. Montoya, assumidamente queer, reuniria participantes de mesmo lugar de fala. No fundo, refletiria sobre si próprio e sua vivência, ressignificada pelas ferramentas do cinema fantástico. Além disso, traria a imagem incomum de fantasmas enquanto entidades sensuais e desejantes, podendo se relacionar amorosamente com os vivos.

Ora, os planos precisaram ser abortados. Diversos colegas do autor, inclusive seu ator principal, Camilo Najer, faleceram durante a preparação da obra, por overdose e outras formas de suicídio mais ou menos consciente. Portanto, o diretor oferece em Anhell69 um filme sobre o filme que não existiu, ou ainda sobre o filme que poderia ter sido. Utiliza as imagens previamente captadas do elenco em saídas para festas (eles se tornaram amigos durante a concepção). Os fantasmas e os romances são apenas citados pela narração em off, na voz de Montoya, cabendo ao espectador supor como teriam se traduzido em ficções. A realidade veio atropelar a fantasia.

Por trás desta beleza sinistra, um tanto etérea e fantasmática, Montoya insiste em trazer a reflexão de volta a ele mesmo. “Eu não pedi para nascer”, declara.

Isso não impede o resultado de possuir alto teor de ficcionalização, no sentido de controle do meio e condicionamento dos personagens para corresponderem aos desejos do criador. O artista colombiano filma sua morte simbólica, acompanhando a trajetória de seu caixão pelas ruas da cidade, no carro dirigido por outro cineasta, o experiente Víctor Gaviria, ícone de um “cinema dos descrentes, dos marginais, dos deixados de fora”, de acordo com Montoya. Se todos morrem, por que não eu? Há uma tentativa de controlar, via arte, os rumos de uma vida que se revela tão frágil ao seu redor. O cinema é explorado enquanto maneira de resistir à finitude, de driblá-la pela imortalização das imagens. Os amigos podem ter falecido, porém, são preservados no âmbar do longa-metragem.

Ao longo do caminho, a narrativa aborda a violência no país, o papel de gangues e do Estado, o abandono paterno, o HIV, a dificuldade de amar e ser amado (pelos outros e por si próprio). Nenhum destes temas será aprofundado, visto que o autor prefere se ater a si próprio, ao invés de mergulhar em pesquisas e dados capazes de contextualizar os aspectos sociológicos mencionados. As afirmações decorrem de uma percepção pessoal, uma intuição de vivência íntima, ao invés de uma disposição a pesquisar o outro.

Em última instância, Anhell69 (título concebido inicialmente para o filme-que-não-houve, baseado no nome do protagonista no Instagram) corresponde à safra de projetos autobiográficos nos quais os diretores se interessam sobretudo pelo mundo ao redor, no seu bairro, em sua casa. Querem falar de si, de suas experiências, desprezando aquilo que não lhes diz respeito. “Preciso falar de mim”, parecem afirmar esta e mais uma dezena de obras apresentadas no Olhar de Cinema — Festival Internacional de Curitiba.

A legitimidade decorre do lugar de fala: Montoya obviamente conhece o ambiente underground, queer de sua cidade, onde as pessoas vivem num eterno presente, devido à falta de perspectivas futuras. Sua entrevista com os amigos-atores soa simplíssima: ele questiona “O que pensa do futuro?”, “Onde se vê daqui a cinco anos?”, tal qual uma seleção de emprego à moda antiga. No caso de uma juventude que se extingue rapidamente antes dos 30 anos, talvez a pergunta adquira um caráter menos protocolar. Em geral, os rapazes desconversam, desviando o foco aos prazeres do presente. Discursam abertamente a respeito do sexo, das drogas. Agem e se comunicam como quem não tem nada a perder. Talvez, de fato, não tenham.

Por trás desta beleza sinistra, um tanto etérea e fantasmática (as vozes são sussurradas, as cores quentes banham os flashes de corpos se movimentando nas festas), o cineasta insiste em trazer a reflexão de volta a ele mesmo. “Eu não pedi para nascer”, declara, em revanche contra a família e a sociedade que lhe devem algo, porém não correspondem. “Eu nasci dois anos depois da morte de Pablo Escobar”, situa-se historicamente tal qual uma Petra Costa colombiana. Ainda existe um desejo muito forte de se afirmar, de dizer: “Eu existo, estou aqui. Olhe para mim, me escute, presencie o meu corpo, a minha dor, a minha identidade”.

O cinema do ego se justifica com maior facilidade em se tratando de uma comunidade minoritária, atacada por sucessivos governos, declarando o orgulho de ser quem é, sem pedir desculpas, nem se martirizar. Há certo orgulho rebelde em dizer: levamos vidas excessivas, nos destruímos, e não pretendemos mudar uma vírgula da nossa conduta. O projeto serve, de certa forma, enquanto manifesto do orgulho queer e marginal.

Até por isso, cabe questionar a denominação de um filme trans, repetida pelo autor em entrevistas. Por um prisma teórico, talvez o termo não se sustente, vista a falta de desenvolvimento científico adequado. Como vimos, o autor privilegia a percepção pessoal à pesquisa da alteridade e diversidade social. O cinema trans seria feito por pessoas trans, a respeito de pessoas trans? Precisaria atravessar diversos gêneros cinematográficos, navegar entre a ficção e o documentário? Nasceria de um movimento autobiográfico? Não se sabe.

O rótulo resta no estágio de provocação simbólica ao público que talvez se espante (ou seduza) por tal afirmação. Estamos em tempos de comunicação espetacularizada, de clickbaits, de retratos idealizados, romantizados e ficcionalizados de si próprios. Anhell69 se adequa com perfeição a esta lógica contemporânea, extraindo o melhor destes códigos de linguagem sem necessariamente se opor a eles, nem tentar romper com os mesmos. Por trás de tamanha rebeldia, desta ode voraz e pulsional às existências efêmeras, resta um pedido muito simples de ser visto, acolhido e amado.

Anhell69 (2022)
7
Nota 7/10

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