O Festival Varilux de Cinema Francês 2022 trouxe a São Paulo e ao Rio de Janeiro duas masterclasses com artistas franceses especializados em séries: Jean-Philippe Amar, diretor de Sentinelas, e Antoine Lacomblez, roteirista de Jogos de Poder e O que Pauline Não Diz. Em comum, ambos demonstram um olhar crítico ao contexto de criação audiovisual, em especial na França, enquanto frisam as diferenças no trabalho em cinemas e séries.
Lacomblez mostra ao público brasileiro uma pouco da variedade de seus roteiros: por um lado, Jogos de Poder se inspira em casos como o da empresa Monsanto, pega num escândalo envolvendo políticos, lobistas e cientistas que fraudavam laudos para aprovarem o uso de pesticidas cancerígenos. Trata-se de uma história ambiciosa, envolvendo dezenas de protagonistas em vários núcleos paralelos. Por outro lado, O que Pauline Não Diz mergulha na psicologia complexa da protagonista, uma mulher acusada de matar o marido, e que parece não fazer grande esforço para fugir à condenação, embora se declare inocente.
Lacomblez conversou em exclusividade ao Meio Amargo sobre o desenvolvimento destes projetos:
Você está apresentando no Brasil dois suspenses: O que Pauline Não Diz e Jogos de Poder. Que preparação fez para escrever estas séries situadas em mundos muito específicos?
Fiz muita pesquisa. As duas séries aconteceram em condições diferentes. Em Jogos de Poder, trabalhei com um diretor conhecido, Jean-Xavier de Lestrade. Já faz doze anos que trabalho principalmente com ele. Cada vez, a ideia era estar muito perto da realidade, mesmo sendo a ficção. Era preciso ter uma base muito sólida de documentação. Foi um trabalho imenso, especialmente em Jogo de Poder, no que diz respeito à pesquisa sobre a política agrícola comum. Pesquisei a política, é claro, porque não posso contar algo inverossímil, e investiguei o impacto das leis agrícolas na vida cotidiana: o preço dos alimentos, o lobby com empresários e deputados. Os argumentos para classificar um produto como pesticida ou não, cancerígeno ou não, fizeram parte dos estudos para o roteiro. Já O que Pauline Não Diz é uma ficção pura. Pesquisamos o funcionamento da justiça, mas pudemos ir nas direções que inventamos, contanto que fosse verossímil. A carga de verificação era outra.
Chegou a consultar deputados, advogados? Jogos de Poder parece diretamente inspirado no caso Monsanto.
Essa foi uma fonte de inspiração evidente. Mas quando investigamos o tema, percebemos que existem incontáveis casos semelhantes. Diversas empresas adotam o mesmo jogo duplo da Monsanto, com as mesmas trocas de e-mail da Monsanto Papers. O direcionamento de empresários para desconfiarem de informações vitais, e falsificarem pesquisas científicas devido ao conflito de interesse com os acionários, acontece em inúmeras indústrias, e sobretudo na indústria agrícola. Fomos aconselhados por advogados nos dois casos. Para O que Pauline Não Diz, juristas validaram os acontecimentos e trouxeram algumas nuances, até porque o meio jurídico pode ser bastante complicado. Eles trouxeram várias precisões, e fizemos modificações a partir disso. Em Jogos de Poder, nós consultamos com um advogado especializado em vítimas de produtos fitossanitários. Ele conhece muitíssimo bem os casos como esses.
Quando se escreve para grandes canais, a liberdade criativa é limitada?
Eu tenho muita sorte. O fato de trabalhar com Jean-Xavier de Lestrade faz com que os altos escalões dos grandes canais não venham até mim. Não sei se é por causa da notoriedade dele, ou porque os filmes dele, até agora, tiveram uma boa audiência. Raramente temos qualquer problema. Às vezes, as pessoas que trabalham nos canais têm opiniões bem interessantes, e precisamos levar em consideração. Mas não sofremos pressão, pelo menos, não por parte do canal. Em outra série, tivemos um produtor tentando fazer com que levássemos a história para o gênero policial, o que não me agradava. Mas em Jogos de Poder, não tivemos problema nenhum. No caso de O que Pauline Não Diz, trabalhamos com a Gaumont, que ficou bem entusiasmada com tudo o que fizemos. O relacionamento foi pacífico, mas sei que sou privilegiado. Alguns colegas às vezes sofrem pressões pesadas, sei disso.
Estas séries dialogam com a cultura francesa atual. Você se preocupa se as referências culturais serão compreendidas da mesma maneira no resto do mundo?
Espero que sejam. Tenho a convicção de que, quando falamos de algo que conhecemos bem, temos mais chances de ser compreendidos em outros lugares. Quando tentamos ser universais, fracassamos, porque isso não existe. É impossível ser compreendido por todo mundo. Quando vejo séries romenas e polonesas, não tenho certeza de ter entendido todas as referências, mas sinto quando é verdadeiro. Por isso, mergulho na trama. Dá para perceber quando o trabalho é autêntico, e acredito que devemos priorizar isso, ao invés de tentar agradar a todos, ou ser compreendidos por todos.
O trabalho do roteirista continua quando a filmagem começa? Você adapta diálogos e cenas às circunstâncias da produção?
Depende muito da cumplicidade do roteirista com o diretor e o produtor. Mas isso acontece com frequência. Às vezes Jean-Xavier me liga e diz: “Pensamos que seria uma cena muda, vista de longe, mas a atriz ainda precisa ter um texto para expressar sentimentos”. Então eu escrevo algo ali, na hora. Isso acontece de vez em quando. Quando o diretor busca cenários e escolhe o elenco, ele pode perceber que vai ser algo diferente do que imaginamos a princípio, então nós adaptamos o texto, claro. Seguimos trabalhando. Alguns diretores gostam de fazer estas modificações sozinhos, mas outros querem que os roteiristas participem. Às vezes frequentamos as filmagens, e Jean-Xavier sempre me convida alguns dias para acompanhar o processo de montagem. Seguimos discutindo. É uma cumplicidade muito forte, e um prazer para mim.
No Brasil, os cursos de roteiro são muito voltados ao cinema. Para quem tem experiência no roteiro de cinema, o que muda, essencialmente, ao escrever uma série?
Não tem nada a ver, são coisas completamente diferentes. Já escrevi muito para o cinema, e agora, faço principalmente séries. O essencial é que temos muito mais tempo para tratar um personagem e uma intriga nas séries. Por isso, podemos enriquecer um personagem com vários segredos, conflitos, perturbações, ambivalências. No cinema, não temos tempo de tratar tudo isso em 90 minutos, ou em 120 minutos. Não temos seis horas de história no cinema! Isso muda muito, e é um dos grandes prazeres de trabalhar em séries. Além disso, as intrigas podem ter várias transformações ao longo de uma série. Se nos interessamos a um personagem em especial, podemos facilmente mudar o ponto de vista. É algo muito mais admissível de fazer entre os episódios. Isso representa uma grande liberdade ao roteirista, contanto que decidamos tomar tal liberdade, sem ficar presos aos clichês ou imposições do canal.
É preciso escrever pensando numa possível sequência, ou segunda temporada?
Nós nunca pensamos nisso, somente os produtores! Trabalhei para uma série recente pensando que seria apenas uma temporada. Mas então os produtores exigiram, em contrato, que a gente escrevesse quatro ou cinco páginas sobre como seria uma sequência. É claro que isso muda a nossa maneira de pensar na história. Mas isso é um jogo, não é nada grave. Não tenho a impressão de que estejam me impondo algo. Tem séries que acho excepcionais, como Chernobyl. Não vejo como poderiam fazer uma segunda temporada, neste caso! Na verdade, tem como fazer, sim: eles podem investigar o futuro dos personagens que decidiram este horror, por exemplo. Sempre podemos imaginar uma continuação. Isso vale para o cinema também: se a gente quisesse, poderia imaginar uma sequência para Casablanca! Basta trabalhar.
Para quem começa a escrever roteiros de série, qual é a melhor formação? Como se preparar?
Existem muitos livros americanos a respeito. Fizeram manuais de instrução sobre o roteiro de séries, com requisitos muito específicos: o payoff, o cliffhanger, etc. Admito que tenho dificuldade de seguir essas regras, porque elas parecem tolher a liberdade ao invés de estimulá-la. Acho bom conhecê-las, um pouco pelo menos, para romper estas regras em seguida. Ou seja, os livros existem, mas eles são perigosos porque o roteirista pode tentar se adequar a este esquema, e acaba fazendo um produto ao invés de uma história convincente. Não há nada pior no cinema e na televisão do que escrever algo parecido com tudo o que já vimos antes. Para nos preparar, o melhor é ver muitas séries, identificar o que amamos em cada série, os elementos que nos interessam. É preciso escrever muito. Às vezes funciona, às vezes, não. Mas a escrita se aprimora com as tentativas.
É raro poder assistir a séries de televisão na tela do cinema. O que a mostra de séries do Festival Varilux representa para você?
É uma alegria absoluta. Estou muito contente. Ver algo que escrevemos numa sala de cinema significa ter contato com o público. Vemos as pessoas que riem, ficam entediadas, aquelas que se mexem na poltrona, outras que se levantam e saem porque não gostaram. É algo mais próximo dos espectadores do que a exibição na televisão ou nas plataformas. Neste caso, não estamos perto do público. Além disso, ver a série projetada numa tela grande é impressionante. Espero que todos poderão, em breve, assistir ao restante das temporadas. Existe algo muito frustrante em toda mostra de séries, que são bem comuns na França: sempre vemos apenas dois episódios. É algo difícil, porque não dá para julgar uma série a partir de dois episódios. Temos uma primeira impressão, mas é apenas isso: a primeira impressão.