“O cinema permite evocar e sugerir, enquanto a série precisa mostrar”, afirma o diretor Jean-Philippe Amar

Após mais de dez anos apresentando novos filmes franceses de todos os gêneros, o Festival Varilux de Cinema Francês inova em 2022 ao incluir em sua programação uma Mostra de Séries. Pela primeira vez, os espectadores descobrem gratuitamente, nas telas do cinema, os dois primeiros episódios de séries francesas que chegam em breve às plataformas de streaming.

Um dos destaques desta seleção é Sentinelas, projeto de guerra dirigido por Jean-Philippe Amar. O artista acostumado ao cinema documentário narra uma missão comandada pelo exército francês. Um grupo de militares pouco experientes viaja ao Mali, encarregado de conter forças terroristas. No entanto, sem conhecerem a cultura local, agem precipitadamente e acabam matando uma criança, o que desperta a revolta contra a presença europeia no país africano.

O Meio Amargo conversou com Amar, em exclusividade, a respeito do trabalho em Sentinelas. Ele explica as diferenças fundamentais entre cinema e séries, além do ritmo particular de produção para um grande canal de televisão:

Que pesquisas foram necessárias para filmar a série de guerra?

O mais importante era tornar o máximo das situações verossímeis. Eu fiz bastante pesquisa: vi muitos documentários e reportagens sobre a missão francesa no Mali. Assisti aos testemunhos de vários soldados. Era fundamental buscar os soldados que estiveram muito perto dos personagens reais em quem a série foi inspirada. Eles não fazem parte das forças especiais, nem são super-heróis. Pelo contrário, na maior parte dos casos, esta foi a primeira ou segunda missão deles. Não tinham grande experiência neste terreno. Quis conhecer as histórias deles, e a apreensão que tinham de ir até o Mali. A maior parte deles fez uma preparação em casernas na França: eles não conhecem o deserto, nem a cultura do país para onde vão. Por isso, precisam cuidar de um território que não conhecem de fato. Encontrei militares desta classe, do tipo que fez missões semelhantes. Reuni bastante informações para entender o imaginário criado a partir de missões do tipo. A ficção é diferente do documentário: os personagens precisam ser verossímeis, é claro, mas eles são criados pelo roteiro. Preciso me aproximar do realismo sem depender dele. Senão, não dá certo nunca, e perco o foco da ficção.

A sua experiência com documentários deve influenciar a maneira de filmar ficções.

Sem dúvida. Percebi que, quando fazia documentário, tentava inserir alguns aspectos da ficção, e desde que comecei a fazer ficções, tento incluir uma linguagem de documentário, especialmente no que diz à maneira de filmar as cenas, de me aproximar do naturalismo.

Existem diferenças fundamentais entre filmar um filme e uma série?

Sim. Em termos de narração, entramos numa era — tanto no Brasil quanto na América do Sul, América Latina e na Europa — em que as pessoas estão submersas por uma nova cultura de séries. Neste caso, traça-se uma linha muito focada na eficiência narrativa. Isso é algo apreensivo para mim. Minha maneira de filmar é diferente: preciso me forçar um pouco para entrar neste esquema, porque senão, não encontro trabalho. Gosto de jogar este jogo, não é um problema absurdo, mas existe uma grande diferença. Existe também outra diferença: o cinema permite evocar e sugerir, enquanto a série precisa mostrar. Se eu pudesse, é claro que escolheria filmar com mais tempo. Há casos e casos: algumas séries têm muito dinheiro, e permitem filmar em condições melhores. Quando há menos dinheiro, o calendário de filmagens é super apertado. Mas eu me adequo a cada situação: quando não tenho muito tempo, não adianta começar a reclamar. Preciso me virar com o tempo disponível, fazendo o melhor que posso, da maneira mais próxima que tinha imaginado. É um trabalho constante de adequação.

Existe uma preparação especial para dirigir séries? Ou a única maneira de aprender é fazendo, a partir dos conhecimentos adquiridos com cinema?

Tenho a impressão que cada um de nós, realizador ou realizadora, tem certa visão do mundo, além de uma sensibilidade particular. Na maneira de abordar as coisas, tentamos seguir esses princípios. Amanhã, se estiver trabalhando num filme de cinema, vou atribuir a mesma maneira de enxergar o mundo. Isso muda de roteiro para roteiro, de caso a caso, mas preciso trazer meu olhar pessoal aos temas.

É preciso deixar o caminho aberto a uma sequência em potencial? Uma segunda temporada?

Na direção, acredito que não muito. Eu me concentro mais na narrativa do momento. Mas alguns autores podem nos convidar a pensar numa sequência. Então eu poderia preparar algo nesse sentido, mas sem dúvida será de maneira inconsciente. Isso não vem desde o princípio: eu me concentro apenas na tarefa de contar a minha história. No caso, era a trama de um grupo de soldados no deserto, confrontados a uma realidade que não imaginavam. Abracei esta narrativa, sem pensar em sequência. Por acaso, estamos pensando numa segunda temporada, mas ainda sem saber como isso vai evoluir. Vamos levá-los de um país a outro, da melhor maneira possível. Escolhemos fazer com que saltem um período de suas vidas. Mas em geral, não filmo pensando no que virá depois.

Esta narrativa sobre a presença francesa na África dialoga com uma história muito particular para os franceses. Acredita que pode ser compreendida da mesma maneira no mundo inteiro?

Tenho a impressão de que esta série toca em questões universais. Neste caso, o Mali foi uma colônia francesa até os anos 1960, e queria abordar isso de alguma maneira. Tratamos o tema através da convivência entre soldados franceses de origens diferentes. Além disso, existe a história sobre o guarda do Mali que, mesmo sem querer dar uma lição de moral à tenente irritada, acaba relembrando o desgaste causado pela França durante a colonização. A questão da dominação de povos é universal: já fui ao Brasil várias vezes, e noto também o problema da herança colonial ainda não digerida. É o mesmo para outros países. Por isso, as questões evocadas são universais. Para o público brasileiro, tanto o Mali quanto a França são países distantes, mas isso atravessa muitas questões em comum. O que significa se alistar por seu país? Defender sua nação? Acreditar numa missão, e perceber que a realidade é diferente? Estas questões e valores se encontram em todos os lugares.

Como trabalhou com os atores? Fez muitos ensaios, deu referências? Deixa a possibilidade de alterarem o texto ou as interações durante as filmagens?

As mudanças de diálogo ocorrem caso a caso. Às vezes eles se sentem mais confortáveis com uma palavra ao invés de outra, então deixo mudarem, contanto que isso não perca o sentido da cena. Sobre a maneira como dirijo os atores, primeiro preciso dizer que adoro trabalhar com atores, e vê-los construírem os personagens. Dedico bastante tempo e atenção a isso. Fiz um longo trabalho de preparação. Costumo me focar muito na pessoa diante de mim: alguns atores são muito receptivos à psicologia dos personagens, enquanto outros são instintivos, e não precisam de muita história pregressa. Eu os observo muito em suas realidades, e adoto um método de trabalho adequado a cada um. Uma jovem atriz como Pauline Parigot, que interpreta Anaïs, é muito instintiva. Ela precisa sentir que confiamos no trabalho dela. Discutimos muito sobre a nuance de cada cena. Corrigimos um pouco o tom entre cada cena, e fazemos longas leituras do texto anteriormente. Na filmagem, existe essa fase em que aprendemos a trabalhar todos juntos. Sempre vou na sensibilidade de cada um: se gostam da psicologia ou não, se são instintivos ou não, se gostam que o diretor dê muitos direcionamentos ou não. A partir disso, tento levá-los à trama principal. Mas adoro quando eles me oferecem algo novo, ou quando produzimos alguma preciosidade acidental durante o trabalho.

O que significa para você a experiência de ver sua série projetada numa tela de cinema?

O que mais me agrada é o contato com o público. Quando fazemos séries, elas são apresentadas aos espectadores através de suas telas pessoais, e não conheço a reação deles. Pelas redes sociais, tenho alguma noção, mas estar perto do público, e ver como vão reagir aos episódios, é algo especial. Poder conversar com eles vai ser muito interessante também: ver as perguntas que terão, saber o que vão gostar ou não. Neste caso, é ainda mais estimulante, por ser um público de outro continente. Imagino que as reações possam ser diferentes daquela que tivemos na França. 

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