Qual é o seu maior medo? Para a jovem Tess (Georgina Campbell), o pavor se encontra na possibilidade de ser agredida sexualmente. Quando ela chega à casa alugada na Internet, e descobre que existe outro rapaz ali dentro, com as mesmas datas de reserva, ela imediatamente teme a perspectiva do assédio. Para os homens, o receio é bem diferente: Keith (Bill Skarsgard) toma cuidado para não ser interpretado por Tess como um agressor, e AJ (Justin Long) considera absurda a acusação de estupro que ameaça encerrar a sua carreira.
Como se percebe, a diferença entre gêneros e o prenúncio de uma violência de caráter sexual constituem dois pontos fundamentais neste projeto. Não é anódino que Tess trabalhe junto a uma documentarista em projetos de caráter progressista, e que AJ seja um produtor envolvido no piloto de uma série de televisão. Adiante, uma câmera de vídeo terá papel fundamental, além das imagens femininas que desfilarão pela tela. O diretor e roteirista Zach Cregger imagina um embate direto entre profissionais da indústria audiovisual, tornando Noites Brutais, ou Barbarian, no original, num longa-metragem da era #MeToo, onde o horror decorre da convivência forçada, e abusiva, entre homens e mulheres.
O roteiro se encaminha da civilização à barbárie. A narrativa se abre como um drama convencional, com uma alusão ao possível romance entre Tess e Keith, presos na casa alugada a ambos. O que fazer? Os proprietários não respondem, e não há hotéis disponíveis na região. Ela tranca a porta do quarto, verifica a carteira dele em segredo, recusa a bebida preparada pelo desconhecido. Ele pede desculpas diversas vezes, explicando se tratar de um jovem elegante e educado, que jamais teria uma conduta inapropriada com a hóspede. No entanto, na cabeça dos dois, o tema em comum diz respeito à violência sexual.
Ora, o espectador demora a perceber que a jornada se estrutura em três atos independentes, com protagonistas distintos e linguagens autônomas. Passada a primeira parte, o roteiro retoma com um novo protagonista, num corte abrupto. Somos lançados numa história separada, como se outro filme tivesse começado na mesma sessão. Com o ato III, algo semelhante ocorre: novamente, um desconhecido assume o controle da aventura, numa imagem multicolorida, em tela próxima do quadrado e fotografia com lentes grande-angulares, provocando uma deformação no ponto de vista.
O adversário se mostra mulher ou homem (ou talvez indefinido, agênero, fluido), sobrenatural ou natural, de acordo com a pessoa à sua frente.
Como todas essas linhas se cruzam? Qual é a relação entre o encontro de Tess e Keith e as denúncias de estupro contra AJ, ou ainda a presença de um prestador de serviços nos anos 1980? Gradativamente, todas as peças começam a se encaixar. O quebra-cabeça será formado apenas nas cenas finais, quando instantes misteriosos do início se esclarecem, e Noites Brutais adquire um caráter coeso, além de um discurso unívoco. Revelar mais do que isso seria estragar a surpresa de um roteiro engenhoso, inesperado e, para a nossa surpresa, bastante coeso rumo à conclusão.
Apesar dos rumos atípicos, o projeto evita a surpresa externa, abrupta e espetacular, em estilo M. Night Shyamalan. Neste caso, as reviravoltas estão dispersas ao longo da trama, e cada guinada fornece tantas respostas a respeito das cenas anteriores quanto indagações para as cenas seguintes. O cineasta solicita um espectador ativo, disposto a participar deste jogo de adivinhações, entre o thriller de invasão doméstica e o horror sobrenatural.
Assim, foge aos clichês desgastados destes subgêneros: a “casa mal-assombrada” em questão está distante das mansões isoladas em florestas, cercadas por gelo seco. Pelo contrário, trata-se da casa restante de um bairro precarizado e abandonado em Detroit, Estados Unidos. A ideia de um vilão se dilui: pelo menos três pessoas e/ou criaturas assumem esta função, passando às vezes de vítimas a agressores, dependendo do ponto de vista. Esteticamente, Cregger abandona os jump scares, os vultos passando no fundo do corredor, as luzes que se queimam no momento de tensão e outros lugares-comuns.
O “monstro” constitui o ápice da fobia relacionado ao gênero e ao outro. Aos olhos do espectador, representa uma figura sobrenatural, com traços e habilidades impossíveis a um ser humano comum. Ora, no interior da trama, a Mãe é considerada uma mulher comum, triste, dotada de doenças psíquicas e físicas graves. A personagem feminina, com os seios expostos, é interpretada por um homem, numa voz meio grave, meio terna; entre gestos brutos e instantes de proteção. O adversário se mostra mulher ou homem (ou talvez indefinido, agênero, fluido), sobrenatural ou natural, de acordo com a pessoa à sua frente.
Logo, o elemento que provoca repugnância ou desconfiança resulta numa projeção de nossas inseguranças. O espaço muda de casa a calabouço e labirinto; o bairro se converte num reduto perigosíssimo ou apenas vazio; a aparição da criatura alterna entre a violência paterna e o cuidado materno. Para os homens, é impossível aceitar o controle de uma figura feminina. Para as mulheres, é inaceitável se sujeitar à brutalidade de policiais ou colegas de trabalho arrogantes. Dependendo de sua perspectiva, identidade e experiência de vida, o horror pode começar em momentos distintos do filme, o que produz parte da sua fascinação.
As demais qualidades residem na potência dos símbolos que se reinventam e se desenvolvem. Tess, experiente em cinema, utiliza um espelho para refletir a luz da lâmpada quando se encontra num lugar escuro. O quarto com uma cama e um aparelho de vídeo significa “calabouço” para ela; mas será apenas um cômodo para colocar tralhas, na visão de Keith, ou uma possibilidade de aumentar a metragem do imóvel, para AJ. O abusador logo se encontrará comprimido sob um corpo indesejado, obviamente replicando a violência efetuada por ele. Há um caráter de rape and revenge (estupro e vingança) na história.
A subida na torre, em determinado momento, desperta um caráter fabular. Diversos contos de fada apresentam a ideia da princesa presa num local elevado, ou de uma criatura aprisionada neste espaço de visibilidade privilegiada sobre o caos lá embaixo. Aqui, as trevas subterrâneas da primeira metade se espelham na crueldade nas alturas, na segunda metade. Enquanto a casa de classe média esconde um universo gigantesco sob o tapete (numa metáfora dos crimes cometidos e ocultados entre quatro paredes), a torre de um não-castelo está distante da romantização ou idealização dos resgates de princesa por príncipes.
O filme contribui a descobrir o talento de Georgina Campbell, ainda pouco conhecida em longas-metragens, numa personagem que ultrapassa o status da vítima, da heroína e da mártir. Bill Skarsgard ganha a chance de participar de um horror sem representar, desta vez, a figura do monstro, como havia feito em It: A Coisa e, em certa medida, na série Hemlock Grove. Já Justin Long abraça sem vaidades a figura do produtor abusivo e condescendente com a brutalidade masculina sistêmica. O prazer consiste em inserir, num cenário conhecido de horror, mulheres que jamais se comportam como as mocinhas clássicas desta linguagem (adeus, scream queens), junto a homens distantes tantoda coragem quanto da maldade caricatural.
Noites Brutais se encerra com uma imagem catártica que despertou aplausos e expressões de surpresa na sala de cinema. Aqui, a violência se impregna aos poucos, cena a cena, de maneira insidiosa e perversa, porque ocultando de propósito informações relevantes ao espectador. O cineasta nos convida a observar estes personagens de uma maneira, apenas para revelar adiante traços de caráter quase opostos. Até que ponto nos identificamos com estas figuras? Em que momento o jovem gentil se converte num perigo, e uma pessoa doente se torna um monstro? A elaboração complexa da moral, e sua materialização exagerada na forma do sobrenatural, fazem de Barbarian uma produção memorável.