“O cinema cearense tem crescido graças aos editais, à Lei Aldir Blanc”, explica Margarita Hernández

O Cine Ceará – Festival Ibero-Americano de Cinema acaba de apresentar a sua 32ª edição, com sessões no Cineteatro São Luiz e no Centro Dragão do Mar, ambos em Fortaleza. Foram apresentados filmes da Argentina, Espanha, Equador, Cuba, Chile, além de diversos longas e curtas-metragens brasileiros, incluindo uma forte seleção paralela de projetos cearenses. No final, o documentário argentino Inseparáveis, de María Álvarez, e o curta Big Bang, de Carlos Segundo, foram os grandes vencedores.

A direção de produção do evento fica a cargo do cineasta Wolney Oliveira, enquanto a direção artística é assinada pela cineasta cubana-brasileira Margarita Hernández. Em entrevista ao Meio Amargo, ela comenta os desafios de organizar o Cine Ceará em meio aos conflitos políticos, neste contexto de pós-pandemia, levando ao público obras ousadas e raras no circuito comercial:

Foto: Chico Gadelha

A organização do festival é afetada pelo contexto de eleições para presidente, governador, deputados?

Sim, isso afeta no sentido da captação de recursos. Mas precisamos fazer um festival a cada quatro anos no meio de uma campanha, então não é novidade. Já passamos por muitas campanhas antes. A questão não é apenas para onde vai o dinheiro, mas o fato que, durante este período, o governo não pode aparecer na publicidade. Existem algumas limitações, e muitas coisas são deixadas para depois da campanha — isso é previsto por lei. Como temos apoio da prefeitura e do governo do Estado, fica um momento confuso. Em termos de captação, lembro que os últimos anos foram bem complicados também. O governo federal ataca a cultura, então as empresas dão um passo atrás, ficam receosas. Por exemplo, agora querem saber os temas dos filmes que vamos programar aqui. Antes desse governo, não existia isso. Alguns apoiadores, não muitos, se interessam em saber que tipo de filmes serão exibidos. Existe uma pressão velada, e às vezes, nem tão velada assim, para saber o tema. Mas vamos em frente e colocamos nossos filmes.

De fato, o Cine Ceará não tem temas específicos por edição, mas alguns assuntos se tornam recorrentes nos filmes selecionados.

É verdade. Seria lindo poder dar uma cara à curadoria, mas é tão diverso aquilo que se produz no Brasil e na América Latina, que se a gente fizer um recorte do tipo, não vamos conseguir mostrar essa pluralidade. Sempre optamos por um leque diverso. Assim o festival acaba ganhando uma cara mesmo sem ser proposital, pelo tipo de cinema que valoriza. Na verdade, nós não escolhemos o filme, são os filmes que escolhem o festival. Alguns já se inscrevem porque acham que têm o perfil do Cine Ceará. Mas preferimos um panorama ibero-americano, bem eclético.

Foto: Rogério Resende

Em uma das noites desta edição, quatro mulheres subiram aos palcos para apresentar seus curtas-metragens. Três desses filmes eram estrelados por mulheres negras. Como a busca pela igualdade racial e de gênero norteia a seleção?

No regulamento do festival, estipulamos 30% para diretoras mulheres — já faz quatro anos que estipulamos esta marca. Na programação, tentamos agrupar e dar coerência aos filmes, para existir uma coerência entre os curtas e os longas. Colocamos, por exemplo, Vicenta B. e O Invisível juntos, ambos centrados numa figura feminina. A diversidade existe por si só. Nós abrimos este espaço, mas ele tem sido ocupado naturalmente: a porcentagem de filmes dirigidos por mulheres cresceu em 40% nas últimas edições. Elas começaram a ser produtoras, diretoras, num número que cresce ano após ano. Então temos estes 30%, mas a participação cresceu por si só. Os temas de gênero e raciais são cada vez mais potentes. Mesmo que não existisse essa cota, os filmes teriam sido selecionados do mesmo jeito, pela qualidade e pela quantidade.

Como vê o estado atual da produção cearense, e sua evolução nos últimos anos?

O cinema cearense tem crescido muito, sem dúvida, principalmente graças aos editais que incentivam a produção, e à Lei Aldir Blanc. A produção deu um pulo no Estado. Temos três escolas de audiovisual da prefeitura, além de cursos de cinema em duas universidades. O número de pessoas formadas em cinema aqui é bastante expressivo. Acredito que Ceará e Bahia sejam os Estados que mais formam novos trabalhadores do audiovisual no Nordeste. A qualidade também cresceu muito. Em anos anteriores, a mostra Olhar do Ceará acolhia a produção local. Nós abríamos a seleção para a competitiva, e depois vinha a convocatória para a Olhar do Ceará. Hoje as duas convocatórias ocorrem ao mesmo tempo, e muitos títulos se inscrevem diretamente na Mostra Olhar do Ceará, onde existem prêmios específicos. Este é o terceiro ano que incluímos também os longas cearenses, além dos curtas, e apenas não selecionamos mais títulos por falta de espaço. Seria possível ter o dobro de títulos exibidos, apenas entre os cearenses.

Vocês têm a preocupação de acompanhar a carreira de diretores descobertos pelo Cine Ceará?

Com certeza, e isso vale não apenas para filmes cearenses. No caso de muitos diretores, nós seguimos desde o primeiro curta. Depois de anos, vemos crescer, e eles voltam ao evento. Esse também é o papel de um festival de cinema: às vezes identificamos um curta-metragem interessante, feito por uma equipe ainda sem recursos, e sem experiência. Mas acolhemos com o mesmo respeito dos longas, exibindo da mesma maneira, fazendo debates. Essas pessoas voltam porque sabem do respeito que temos pelos cineastas no início da carreira.

O festival é ibero-americano, mas essa edição tem filmes em coprodução com o Japão, além de histórias situadas parcialmente nas Coreias do Norte e do Sul. Como enxerga esta abertura ao resto do mundo?

De fato, temos muitas coproduções. Mas praticamente todo o cinema latino-americano, até por uma questão econômica, abriu seus contatos e horizontes. O programa Ibermedia é responsável por grande parte destes encontros entre o cinema latino-americano e os países europeus. As coproduções são incentivadas, com fundos específicos para isso. O Brasil já não co-produz tanto assim, talvez pelo tamanho enorme do país, e pela diferença linguística. É lógico que nada disso impede coproduções, e poderíamos dialogar mais com nossos vizinhos de fronteira, caso da Argentina. Ainda tem pouco diálogo entre países da América Latina, porque eles se voltam naturalmente aos países europeus, com mais recursos, sobretudo pelo programa Ibermedia.
É precioso ter este contato com outras culturas. São outras formas de olhar, e isso enriquece os filmes. O Brasil precisa de outros pontos de vista para suas histórias, até para se enxergar melhor. Além disso, não existe janela de exibição para filmes latino-americanos. Conhecemos muito pouco do que é produzido pelos países vizinhos, porque o circuito é tomado pelo cinema norte-americano. Muitas pessoas ficam em casa, vendo filmes na Netflix, e quando saem de casa, é para ver filme-show. Mas isso não significa que não gostem de outras formas de cinema: basta ver tantos espectadores no São Luiz, num lugar meio afastado, numa praça até meio perigosa. 

Foto: Rômulo Santos

O aprendizado de organizar o Cine Ceará durante a pandemia trouxe novas maneiras de coordenar o festival agora?

Eu percebo que as pessoas estão querendo voltar ao cinema. Não tivemos diferença no número de público entre 2019, antes da pandemia, e agora. Os anos de 2020 e 2021 foram híbridos por causa da Covid-19, então é claro que a frequentação baixou. Agora, mesmo que a situação no entorno da sala de cinema tenha piorado muito, a presença do público tem sido ótima. Tenho sentido as pessoas com saudade da festa do cinema, dos encontros. Acredito que, se tivessem melhores condições de segurança na praça, a sala estaria lotada, como ficou por muitos anos. Gosto muito do cinema São Luiz. Percebo que as pessoas não assistem a esse tipo de produções apenas pela dificuldade de acesso. Mas quando estão disponíveis, pelo festival, elas vão, prestigiam, aplaudem. Tivemos mais de 50% de ocupação todos os dias, incluindo em dias de semana. Nas cerimônias de abertura e encerramento, então, a casa fica cheia. 

Algumas produções da seleção, geralmente espanholas, costumam ter muito mais recursos que os filmes latino-americanos. Existe a preocupação de equilibrar estas formas de cinema na mostra competitiva?

Bom, nós abrimos as inscrições, e dependemos de quem vai se inscrever. O fator principal se encontra na existência de uma curadoria boa. Por estarmos fora do eixo Rio-São Paulo, temos uma dificuldade de ter a participação da imprensa, que é fundamental para a divulgação e o debate. Por isso, trazemos sempre filmes inéditos no Brasil, o que garante a atenção ao festival. Outro fator é ter um júri bom, que saiba avaliar o filme com carinho. Nós nos preocupamos muito em formar um júri capaz de avaliar bem os filmes. O festival tem apostado muito na qualidade dos filmes — isso fica à frente. Não somos um festival que prioriza tapete vermelho, cheio de atores de televisão. Esse não é o nosso foco: não temos condição de nos voltar para isso, nem é nosso interesse, apesar de termos homenagens e artistas presentes. Nossa prioridade é a qualidade dos filmes, fazendo um festival ibero-americano com olhares diferentes, difíceis de encontrar no cinema, e que as pessoas dificilmente vão encontrar no circuito comercial.
Os filmes não se distribuem: tivemos obras maravilhosas, que ganharam o festival, mas nunca foram lançadas nos cinemas brasileiros. São filmes próximos, da Argentina, Uruguai. O Cine Ceará é a oportunidade de trazer esses olhares, e dar ao público uma quantidade de filmes bons e raros. Esse é o perfil do festival. Queremos levar as pessoas, apresentar essas formas de cinema ao público. Nossa briga é pela divulgação, pela visibilidade desta forma de cinema. A divulgação mudou muito: ela ocorre menos nos jornais impressos do que no Instagram e nas outras redes. A maior parte das pessoas que vão ao São Luiz viram os trailers nas redes e ficaram curiosas com os filmes. Agora é torcer para a situação melhorar muito quando pararem estes ataques à cultura. Afinal, empresas que eram nossas parceiras deixaram de investir, porque acham que o momento político é desfavorável. A cultura tem sido demonizada. A empresa não quer se envolver, dar as caras. Mas espero que isso passe, e a gente continue nessa linha, podendo crescer, fazer mostras temáticas, de países específicos, retrospectivas, etc. 

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