Julie (Renate Reinsve) é definida na sequência inicial como uma garota inconstante, impulsiva e privilegiada socialmente. Ela escolhe um curso universitário, depois se decepciona e troca por um segundo, e então, por um terceiro. Neste período, muda de namorado, de ambição profissional, acreditando ter encontrado sua verdadeira paixão a cada nova escolha. Em todos os momentos, recebe o apoio caloroso da mãe, munida do discurso “Se você está feliz, vá em frente”. A jovem se move por uma busca frenética pela felicidade.
O diretor e co-roteirista Joachim Trier insere esta fábula dentro de uma perspectiva pós-moderna. Aqui, blogs e telefones celulares desempenham papel importante na vida das pessoas. O movimento MeToo é mencionado, assim como o mansplaining e o direito feminino à autonomia de seus corpos. Embora alguns contos se esforcem em parecer universais e atemporais, facilitando a tarefa de identificação com o espectador, A Pior Pessoa do Mundo (2021) segue o caminho contrário, tornando-se específico.
Entre todos os aspectos passíveis de descrição da heroína, o autor privilegia o sentimento amoroso. Os trabalhos desta médica-fotógrafa-vendedora de livros são deixados em segundo plano; os relacionamentos familiares surgem discretamente, em cenas pontuais. A narrativa a segue num turbilhão presente que dispensa qualquer perspectiva de futuro. O conforto da vida de classe média se mantém, mesmo quando ela vive de pequenos bicos junto ao namorado barista. Para o texto, interessa sobretudo investigar as idas e vindas sentimentais de uma jovem inconstante.
Este fator tem provocado tanta fascinação quanto questionamentos. Por um lado, raras comédias românticas consagram tamanha atenção à psicologia feminina (curiosamente, num texto escrito por dois homens), evitando julgá-la moralmente por suas aventuras sexuais e amorosas. Por outro lado, paira a impressão de que Julie é condicionada aos homens com quem convive: a narrativa acompanha o namoro com Aksel (Anders Danielsen Lie), depois com Eivind (Herbert Nordrum), e então a reaproximação com Aksel. Ela será a “namorada de”, ou nos instantes de solidão, chorará a saudade de um deles.
O senso de inevitabilidade amorosa (ela precisa ficar com um ou outro, cabendo escolher o felizardo) é intensificado pela divisão em prólogo, doze capítulos e epílogo, anunciados desde o princípio. Tal estrutura retira a impressão de um ritmo aleatório: a história se anuncia enquanto ficção roteirizada e encaminhada para um final concebido pelo autor. Em outras palavras, o filme chama atenção ao fato de ser filme – impressão favorecida pelo final, quando a vertente metalinguística se explicita aos olhos do espectador.
Ora, o público mergulha numa experiência diferente de ritmo e tom a partir do momento em que sabe quando a história terminará, ou o quanto falta para sua conclusão. Os capítulos de títulos premonitórios ou irônicos (“Os outros”, “A traição”, “Sexo oral em tempos de MeToo”) antecipam o tema abordado, em segmentação próxima da estrutura literária. A Pior Pessoa do Mundo (2021) insiste a cada instante: sou apenas uma história, sou uma ficção, uma construção artística externa. Acredite em mim, mas não muito. Trier deseja uma parte de imersão, e outra, de senso crítico — um posicionamento ousado dentro de um gênero de tamanho reconforto e previsibilidade, como a comédia romântica.
O filme se sobressai quando assume o caráter fantástico da paixão.
A este propósito, o filme se sobressai quando assume o caráter fantástico da paixão. A ficção possibilita “congelar o tempo” para que a heroína saia correndo pelas ruas da cidade em busca de seu amor, desenhando um tempo alternativo que provocaria um efeito espetacular em narrativas de ficção científica ou de super-herói, mas aqui, pertencem ao universo íntimo: o mundo é filtrado pela perspectiva afetiva de Julie. Se ela não enxerga mais ninguém além de Eivind naquele instante, o resto do universo para de agir. O amor literalmente move (ou impede de mover) o mundo.
Algo semelhante ocorre com as brincadeiras iniciais entre Julie e Eivind durante a festa de casamento em que se encontram. A melhor sequência da produção ocorre neste instante naturalista, porém levemente apartado do real. O ato de cheirar o suor alheio, de vê-lo urinar no banheiro da festa e de se aproximar sobre uma cama onde ficam todos os casacos dos hóspedes provoca um senso de inadequação, aventura e rebeldia, enquanto coloca ambos em sintonia, compartilhando uma experiência única. Ao espectador, cabe a posição privilegiada de olhar onisciente: apenas ele presencia toda a magia que cerca Julie.
Infelizmente, a alegria e o furor destes recursos se acalmam, até desaparecerem por completo da trama. A ficção privilegia uma saída clássica, atribuindo uma doença letal a determinado personagem, com pouco tempo de vida pela frente. Assim, o melodrama toma conta da projeção, as atitudes machistas do sujeito são perdoadas, e a autonomia de Julie se freia. A mulher que antes tomava atitudes espontâneas passará então a agir conforme acredita ser correto. A moral se insere de maneira amarga na trama, na função de contrapeso a tamanha leveza inicial.
Ao menos, as virtudes e deficiências do roteiro são banhadas em trabalho primoroso de fotografia, valorizando as luzes naturais e a textura da película granulada, além da atuação impecável de Reinsve. A atriz se sente confortável tanto na euforia quanto na melancolia, transitando entre ambos ao longo de uma mesma cena, em silêncio, sem sobressaltos. Ela ostenta um trabalho fácil com o corpo, os diálogos e a modulação da voz, como se não houvesse esforço qualquer nesta presença e disposição ao outro.
Tamanho vigor das imagens e da protagonista, que domina a integralidade das cenas, se sobrepõe ao desfecho amargo. Na tentativa de se opor à felicidade artificial dos desfechos de comédias românticas habituais, Trier busca uma “terceira via” a Julie, que testemunha simbolicamente a tristeza alheia, com distanciamento, na belíssima cena final. Talvez o impacto deste momento atenue o fato de que a jovem só encontrou uma forma de amor-próprio quando os homens ao redor permitiram tal distanciamento. A mulher livre só o foi, de fato, até o limite imposto pelos inícios e términos de namoros.