A Pior Pessoa do Mundo (2021)

A mulher do tempo presente

título original (ANO)
Verdens Verste Menneske (2021)
país / gênero
Noruega, França, Suécia, Dinamarca / Drama, Romance, Comédia
duração
128 minutos
direção
Joachim Trier
elenco
Renate Reinsve, Anders Danielsen Lie, Herbert Nordrum, Hans Olav Brenner, Maria Grazia Di Meo, Helene Bjørneby, Vidar Sandem
visto em
Cinemas

Julie (Renate Reinsve) é definida na sequência inicial como uma garota inconstante, impulsiva e privilegiada socialmente. Ela escolhe um curso universitário, depois se decepciona e troca por um segundo, e então, por um terceiro. Neste período, muda de namorado, de ambição profissional, acreditando ter encontrado sua verdadeira paixão a cada nova escolha. Em todos os momentos, recebe o apoio caloroso da mãe, munida do discurso “Se você está feliz, vá em frente”. A jovem se move por uma busca frenética pela felicidade.

O diretor e co-roteirista Joachim Trier insere esta fábula dentro de uma perspectiva pós-moderna. Aqui, blogs e telefones celulares desempenham papel importante na vida das pessoas. O movimento MeToo é mencionado, assim como o mansplaining e o direito feminino à autonomia de seus corpos. Embora alguns contos se esforcem em parecer universais e atemporais, facilitando a tarefa de identificação com o espectador, A Pior Pessoa do Mundo (2021) segue o caminho contrário, tornando-se específico.

Entre todos os aspectos passíveis de descrição da heroína, o autor privilegia o sentimento amoroso. Os trabalhos desta médica-fotógrafa-vendedora de livros são deixados em segundo plano; os relacionamentos familiares surgem discretamente, em cenas pontuais. A narrativa a segue num turbilhão presente que dispensa qualquer perspectiva de futuro. O conforto da vida de classe média se mantém, mesmo quando ela vive de pequenos bicos junto ao namorado barista. Para o texto, interessa sobretudo investigar as idas e vindas sentimentais de uma jovem inconstante.

Este fator tem provocado tanta fascinação quanto questionamentos. Por um lado, raras comédias românticas consagram tamanha atenção à psicologia feminina (curiosamente, num texto escrito por dois homens), evitando julgá-la moralmente por suas aventuras sexuais e amorosas. Por outro lado, paira a impressão de que Julie é condicionada aos homens com quem convive: a narrativa acompanha o namoro com Aksel (Anders Danielsen Lie), depois com Eivind (Herbert Nordrum), e então a reaproximação com Aksel. Ela será a “namorada de”, ou nos instantes de solidão, chorará a saudade de um deles.

O senso de inevitabilidade amorosa (ela precisa ficar com um ou outro, cabendo escolher o felizardo) é intensificado pela divisão em prólogo, doze capítulos e epílogo, anunciados desde o princípio. Tal estrutura retira a impressão de um ritmo aleatório: a história se anuncia enquanto ficção roteirizada e encaminhada para um final concebido pelo autor. Em outras palavras, o filme chama atenção ao fato de ser filme – impressão favorecida pelo final, quando a vertente metalinguística se explicita aos olhos do espectador.

Ora, o público mergulha numa experiência diferente de ritmo e tom a partir do momento em que sabe quando a história terminará, ou o quanto falta para sua conclusão. Os capítulos de títulos premonitórios ou irônicos (“Os outros”, “A traição”, “Sexo oral em tempos de MeToo”) antecipam o tema abordado, em segmentação próxima da estrutura literária. A Pior Pessoa do Mundo (2021) insiste a cada instante: sou apenas uma história, sou uma ficção, uma construção artística externa. Acredite em mim, mas não muito. Trier deseja uma parte de imersão, e outra, de senso crítico — um posicionamento ousado dentro de um gênero de tamanho reconforto e previsibilidade, como a comédia romântica.

O filme se sobressai quando assume o caráter fantástico da paixão.

A este propósito, o filme se sobressai quando assume o caráter fantástico da paixão. A ficção possibilita “congelar o tempo” para que a heroína saia correndo pelas ruas da cidade em busca de seu amor, desenhando um tempo alternativo que provocaria um efeito espetacular em narrativas de ficção científica ou de super-herói, mas aqui, pertencem ao universo íntimo: o mundo é filtrado pela perspectiva afetiva de Julie. Se ela não enxerga mais ninguém além de Eivind naquele instante, o resto do universo para de agir. O amor literalmente move (ou impede de mover) o mundo.

Algo semelhante ocorre com as brincadeiras iniciais entre Julie e Eivind durante a festa de casamento em que se encontram. A melhor sequência da produção ocorre neste instante naturalista, porém levemente apartado do real. O ato de cheirar o suor alheio, de vê-lo urinar no banheiro da festa e de se aproximar sobre uma cama onde ficam todos os casacos dos hóspedes provoca um senso de inadequação, aventura e rebeldia, enquanto coloca ambos em sintonia, compartilhando uma experiência única. Ao espectador, cabe a posição privilegiada de olhar onisciente: apenas ele presencia toda a magia que cerca Julie.

Infelizmente, a alegria e o furor destes recursos se acalmam, até desaparecerem por completo da trama. A ficção privilegia uma saída clássica, atribuindo uma doença letal a determinado personagem, com pouco tempo de vida pela frente. Assim, o melodrama toma conta da projeção, as atitudes machistas do sujeito são perdoadas, e a autonomia de Julie se freia. A mulher que antes tomava atitudes espontâneas passará então a agir conforme acredita ser correto. A moral se insere de maneira amarga na trama, na função de contrapeso a tamanha leveza inicial.

Ao menos, as virtudes e deficiências do roteiro são banhadas em trabalho primoroso de fotografia, valorizando as luzes naturais e a textura da película granulada, além da atuação impecável de Reinsve. A atriz se sente confortável tanto na euforia quanto na melancolia, transitando entre ambos ao longo de uma mesma cena, em silêncio, sem sobressaltos. Ela ostenta um trabalho fácil com o corpo, os diálogos e a modulação da voz, como se não houvesse esforço qualquer nesta presença e disposição ao outro.

Tamanho vigor das imagens e da protagonista, que domina a integralidade das cenas, se sobrepõe ao desfecho amargo. Na tentativa de se opor à felicidade artificial dos desfechos de comédias românticas habituais, Trier busca uma “terceira via” a Julie, que testemunha simbolicamente a tristeza alheia, com distanciamento, na belíssima cena final. Talvez o impacto deste momento atenue o fato de que a jovem só encontrou uma forma de amor-próprio quando os homens ao redor permitiram tal distanciamento. A mulher livre só o foi, de fato, até o limite imposto pelos inícios e términos de namoros. 

A Pior Pessoa do Mundo (2021)
7
Nota 7/10

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