A Acusação (2021)

O falso paralelismo

título original (ano)
Les Choses Humaines (2021)
país
França
gênero
Drama
duração
138 minutos
direção
Yvan Attal
elenco
Ben Attal, Suzanne Jouannet, Charlotte Gainsbourg, Mathieu Kassovitz, Pierre Arditi, Audrey Dana, Benjamin Lavernhe, Judith Chemla, Franz-Rudolf Lang, Camille Razat, Laëtitia Eïdo
visto em
Cinemas

Este drama parte da compreensão que uma tragédia íntima é capaz de afetar muito mais pessoas do que aquelas diretamente envolvidas no caso. Logo, a violência se transforma numa questão social, ao invés de individual. Quando o estudante Alexandre Farel (Ben Attal) é acusado de estuprar Mila Wizman (Suzanne Jouannet), a filha do namorado de sua mãe, o caso repercute em pelo menos doze pessoas diferentes: seus pais, maridos, filhos, colegas de trabalho, amigos, advogados de ambas as partes. Todos serão cobrados pela maneira como educam os filhos e como se posicionam diante de um ato de violência.

O roteiro faz questão de tornar o tema ainda mais delicado à ciranda de personagens, fazendo com que cada um tenha algo a perder neste episódio: Jean Farel (Pierre Arditi), o avô do réu, pode deixar de receber a medalha de Legião da Honra pelo Estado francês; e a palestrante Claire Farel (Charlotte Gainsbourg) é questionada por sempre ter se posicionado contra estupradores, exigindo penas severas aos criminosos, até se ver confrontada ao caso contra o próprio filho. O texto evita abordar pessoas comuns, fáceis de se identificar, preferindo um grupo particularmente relacionado à imagem pública. 

Logo, A Acusação abdica do naturalismo para aprofundar o teor de suspense e transformar o episódio num debate de sociedade oferecido ao público. Se a vítima não disse “não” aos avanços do garoto, nem tentou repeli-lo, mas ainda assim demonstrou a aversão ao sexo, o caso ainda é considerado estupro? As leis ainda podem julgar moralmente mulheres por terem bebido e usado drogas? Que papel desempenha a palavra das vítimas e dos réus neste caso, e como a justiça e os policiais agem face a situações do tipo?

O caráter monotemático poderia se tornar ainda mais escolar caso o drama não dedicasse 50 minutos a apresentar os personagens antes de introduzir o estupro. O diretor Yvan Attal deseja que o espectador conheça bem cada uma das pessoas envolvidas, de modo a evitar posicionamentos imediatos em favor dele ou dela. Alexandre e Mila nem sequer podem ser considerados os protagonistas de sua própria tragédia, dividindo o foco com inúmeras figuras de importância semelhante. Para o olhar da direção, todos são vítimas, destruídas em igual medida pelo caso.

O longa-metragem introduz um incômodo paralelismo, como se estivessem em jogo apenas a versão dela contra a versão dele, e ambas se equivalessem.

Neste aspecto, o projeto encontra seus pontos mais questionáveis. Começando pelo capítulo “Ele — Alexandre Farel”, privilegia inicialmente a perspectiva do menino. O texto revela o comportamento agressivo sexualmente, e possessivo em relação às mulheres. No entanto, corrobora o ponto de vista da antiga amante, Yasmina (Laëtitia Eïdo), para quem o caráter impulsivo do estudante de engenharia jamais poderia ser confundido com uma violência. O capítulo seguinte, dedicado à vítima, chega muito mais tarde na trama, quando nosso ponto de vista já foi condicionado a ficar mais perto do garoto do que da menina.

Uma vez introduzido o segmento “Argumentações finais”, quando promotor e advogado de defesa apresentam suas brilhantes falas nos tribunais, o longa-metragem introduz um incômodo paralelismo, como se estivessem em jogo apenas a versão dela contra a versão dele, e ambas se equivalessem. Talvez isso sirva ao domínio legal, porém não satisfaz num discurso artístico e cinematográfico. A câmera evita se posicionar junto à vítima, conferindo tanta atenção ao olhar tristonho do réu quanto à expressão abatida da vítima. Para a montagem, ambos são comparáveis. Duas vidas foram destruídas da mesma maneira.

Attal acredita estar construindo um opus de força e tensão. As cenas de tribunal apresentam uma inesperada câmera giratória, circulando o rosto dos representantes legais como se não desejasse perder uma única vírgula de suas palavras, uma mínima alteração das expressões faciais. A fotografia acentua os contrastes, reforça a nitidez e a frieza. A profundidade de campo se reduz, a montagem alterna entre diferentes rostos. Não é mais Alexandre quem está sendo julgado, e sim o estupro, o consentimento, e o olhar do espectador. Somos convidados a tomar partido e escolher um lado, ou acatar uma das duas falas. 

O sofrimento de Mila é transformado em diversão e exemplo de causa, mero ponto de partida para a discussão de um tema. A maior prova da despersonalização da menina, e do esvaziamento psicológico da mesma, ocorre nos inesperados flashbacks da noite do crime, que nunca acrescentam nenhuma informação relevante aos autos, e preservam a dinâmica do “ele disse, ela disse”, conferindo atenção idêntica ao agressor e à vítima. A ambiguidade desta cena desperta a impressão de que “jamais saberemos a verdade” — uma informação verdadeira no domínio dos fatos, mas que minimiza o trauma da garota diante do ocorrido, como se a impossibilidade de saber o que ocorreu de fato diminuísse a importância de determinar um responsável.

Em outras palavras, A Acusação nunca se preocupa em honrar Mila, compreendê-la, nem demonstrar o peso do processo em sua vida pessoal. Uma vez ocorrido o crime, o texto salta 30 meses para o julgamento, e as dores pós-traumáticas serão deixadas à curiosidade do espectador, ocultadas pela elipse. Ela compõe mero peão no tabuleiro de falas e argumentações, onde sua voz não possui maior importância do que aquela de qualquer outro interessado no episódio. É louvável que o roteiro parta da compreensão do estupro enquanto fenômeno social, porém se torna lamentável que não permaneça junto à garota conforme a trama avança.

Por fim, o drama se apresenta como uma obra ponderada, de imagens austeras e distanciadas. Attal adota uma postura neutra, deixando todo a interpretação moral e política a cargo do espectador, e evitando se posicionar por conta própria. Apesar do veredito final, anunciado em voz off (sem permitir observar o rosto dos personagens no tribunal, nem acenar ao impacto do mesmo em suas vidas), resta a impressão de que Mila perdeu. “Este é o caso de Alexandre, não de Mila. É ele quem corre o risco de ficar na prisão”, alerta o advogado do garoto. De certo modo, o drama compactua com este ponto de vista.

A Acusação (2021)
5
Nota 5/10

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