Trem-Bala (2022)

O jogo do mata-mata

título original (ano)
Bullet Train (2022)
país
Japão, EUA
gênero
Comédia, Ação
duração
126 minutos
direção
David Leitch
elenco
Brad Pitt, Joey King, Aaron-Tayloy Johnson, Brian Tyree Henry, Bad Bunny, Michael Shannon, Sandra Bullock, Andrew Koji, Hiroyuki Sanada, Logan Lerman, Zazie Beetz, Karen Fukuhara
visto em
Cinemas

Um japonês, um mexicano, um americano e um inglês entram num trem. Este pode parecer o começo de uma piada, e de certo modo, é isso mesmo. Este projeto jamais se leva a sério, testando os limites do pacto com o espectador diante dos absurdos crescentes: se eu colocar uma luta sangrenta no vagão, você vai acreditar na trama? Se um mascote de pelúcia participar da briga, ainda vai acreditar? E se os personagens brigarem na parte externa do veículo em movimento? E se o trem descarrilhar?

Trem-Bala se assemelha a uma brincadeira, no melhor sentido do termo. Trata-se de uma traquinagem caríssima, repleta de bons efeitos visuais e atores do alto escalão de Hollywood. No entanto, ainda constitui um faz-de-conta, uma festa de clichês que tentam se subverter, ou pelo menos rir de si próprios. Ao invés de fazer seu herói viajar aos quatro cantos do mundo, em moldes James Bond ou Agente Oculto, a produção traz as diferentes culturas para o interior do veículo do título. A ação precisa ocorrer entre os corredores estreitos e banheiros apertados.

Os personagens citam roubos antigos em Johanesburgo, Bolívia, México. Os japoneses resgatam o senso de honra e os códigos do cinema de samurai; os mexicanos parodiam o sangue latino e os amores exagerados; os americanos se ridicularizam pela ignorância e senso de superioridade; os britânicos são descritos pela falsa polidez e pelos rígidos códigos de conduta. Ninguém sai ileso desta ridicularização de uma dezena de assassinos.

O motivo para a disputa é simples, como não poderia deixar de ser: uma maleta de dinheiro, além das ameaças de um vilão batizado de Morte Branca. O roteiro assume seus estereótipos de maneira tão autodepreciativa, e mesmo cínica, que consegue se divertir bastante com os códigos do filme de ação B, elevados graças aos cuidados de produção. O mesmo roteiro poderia servir a uma produção com Steven Seagal, do tipo que iria direto às prateleiras das videolocadoras décadas atrás. A graça, para os produtores, nasce da intenção deliberada de viabilizar tal insanidade com os recursos de uma produção refinadíssima.

Há cenas espetaculares de tiros e perseguições, no entanto, os embates se concentram em diálogos. Para cada piada e provocação, existe uma enxurrada de referências pop, participações especiais e gags.

Parte considerável do sucesso da empreitada se deve às escolhas do elenco. David Leitch, diretor de John Wick (2014), Atômica (2017) e Deadpool 2 (2018), cerca-se de um time dos sonhos de atores capazes de transitar entre a comédia física e a ação. Brad Pitt está totalmente confortável na pele do assassino de baixa qualificação, enquanto Aaron Taylor-Johson concebe um matador britânico irritado, em dupla com Brian Tyree Henry, encarnando um mercenário de bom coração. Mesmo no trabalho de voz, Sandra Bullock se mostra excelente na parceria com Pitt.

O diretor vai além, ao incorporar no universo do pop-veloz-multicolorido algumas figuras não conhecidas por este traquejo. Joey King ganha a oportunidade de parodiar a imagem de garota indefesa, algo que faz com prazer manifesto; enquanto Logan Lerman aceita uma ponta divertida, e Michael Shannon compõe um dos tipos mais difíceis da trama, porque criado essencialmente pelas expectativas de terceiros. Quando enfim surge em cena, ele precisa estar à altura da mitologia desenvolvida durante mais de uma hora de narrativa.

Com este grupo reunido, a ação se concentra sobretudo no texto. Sim, há cenas espetaculares de tiros e perseguições, no entanto, os embates se concentram em diálogos. A seriedade de uns enfrenta o despojamento do outro, homens disputam espaço com mulheres; os mais novos duelam com os mais velhos; o ocidente mede forças com o oriente. Para cada piada e provocação, existe uma enxurrada de referências pop, participações especiais e gags repetidas.

É certo que, no final do segundo terço, a trama se arrasta um pouco, quando ninguém se apodera da tal maleta, e o destino dos protagonistas soa desimportante. O Morte Branca vai aparecer mesmo? O que nos indica que as ameaças externas sejam tão perigosas assim? A overdose de piadas com o desenho Thomas e seus Amigos e com sessões de psicoterapia se aproxima do esgotamento. Um corte de dez ou quinze minutos neste trecho tornaria a jornada mais sucinta, porém Leitch se delicia demais com este encontro entre adultos perigosos e infantis para reduzir a brincadeira.

Ressalvas à parte, Trem-Bala oferece uma boa experiência graças a certas escolhas de direção. Em primeiro lugar, interessa a aparência de normalidade neste trem: enquanto uma dúzia de pessoas se esfaqueiam, trocam tiros, quebram objetos e soltam cobras venenosas pelo chão, os demais passageiros seguem seus trajetos como se nada tivesse ocorrido. A luta no “vagão silencioso” constitui o ápice desta abordagem. Fiscais e funcionários perambulam pelo veículo sem notar nenhuma perturbação digna de considerarem uma urgência. Parte considerável da comicidade nasce da loucura que não interrompe o real.

Em segundo lugar, a estética assume uma combinação alucinante de videogame, videoclipe e desfile de moda. Os personagens estão impecavelmente vestidos, posando ao enquadramento nos pontos exatos, absorvendo as luzes verde, rosa, amarelo e azul neon. O estilo da montagem e a velocidade das cenas lembra as fases de um game, no qual o Morte Branca seria o grande vilão a superar. A utilização intensa de trilha sonora inesperada (canções doces para instantes violentos; músicas tensas em cenas de aparência calma) contribui ao humor de desconforto, ou de constrangimento.

Em terceiro, a narrativa faz uma brincadeira curiosa com os conceitos de sorte e azar. Filmes de ação costumam estar repletos de inverossimilhanças justificadas pelo talento e a obstinação do herói. Aqui, em contrapartida, face a um grupo de figuras hipócritas e mentirosas, os fatos se justificam pelos golpes do acaso: Prince (Joey King) tem sorte sempre; Joaninha (Brad Pitt) tem azar sempre. Esta predisposição oferece uma nova justificativa aos acontecimentos que afetam uma e outro. 

Ao invés de se esconder por trás de uma aparência de lição de moral ou retidão de caráter, Trem-Bala retira por total a noção de um herói admirável. Cada indivíduo ali dentro efetua seu trabalho por amor ao dinheiro ou a si mesmo. Às vezes, aparentam perambular a esmo nos vagões, provocando-se pelo prazer do gesto, ou para permitir à jornada durar um pouquinho mais. Não há senso de urgência ou perigo real: assim como personagens de um videogame, eles poderem morrer e retornar vivos na cena seguinte — algo que de fato acontece algumas vezes aqui.

Isso permite que, na conclusão, as referências se multipliquem, e os atores saiam com leves machucados após uma catástrofe de proporções gigantescas. Eles riem diante de escombros porque nada daquilo parecia real, e porque, no fundo, não se importam. Estes anti-heróis sem qualidades rompem com as virtudes dos super-heróis e agentes secretos, e retiram a noção de propósito moral da aventura. Os homens e mulheres desta comédia brigam por brigar, para os nossos olhos. Às vezes, interrompem uma luta mortal para conversar; e então retornam. As imagens não enxergam com muita seriedade o crime, nem as culturas locais, nem o próprio cinema. Existe um caráter alegremente niilista no final deste caríssimo jogo de mata-mata.

Trem-Bala (2022)
8
Nota 8/10

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