Em 2015, o Festival de Berlim trouxe na mostra competitiva o drama sobre uma mulher que se aventurava pelo deserto, estabelecendo inúmeros romances pelo caminho e utilizando seu poder de sedução para fugir dos problemas. Nicole Kidman interpretava o papel principal de Rainha do Deserto, de Werner Herzog. O filme se tornou motivo de chacota entre críticos e espectadores. Não ganhou distribuição na maioria dos países, e ficou conhecido como um passo em falso para um cineasta brilhante, porém muito irregular.
Oito anos se passaram, e a competição da Berlinale recebe outro drama/aventura a respeito de uma mulher efetuando sua jornada de descoberta íntima através do deserto. Mais uma vez, o comando fica a cargo de um dos maiores nomes do cinema alemão, neste caso, Margarethe von Trotta. Novamente, veicula-se a mensagem de que as principais forças e fraquezas de uma mulher residem na capacidade de se entregar por completo ao amor. Neste novo canto da sereia, o charme feminino também se mostra capaz de levar homens à loucura. Uma vez mais, o resultado é fraco, para dizer o mínimo.
Aqui, a heroína é descrita unicamente por seu relacionamento com os homens. Uma das maiores poetisas em língua alemã, a austríaca não é vista escrevendo uma linha sequer. O roteiro prefere o momento em que suas principais obras já foram redigidas e aclamadas, restando o instante em que a inspiração lhe falha. O drama sugere que a crise profissional estaria intimamente ligada às crises amorosas, portanto, investe no diário sentimental enquanto prova determinista de onde viriam as verdadeiras fontes de trabalho de uma mulher: no caso, o amor.
Bachmann alterna entre o carinho de três homens: Max Frisch (Ronald Zehrfeld), marido ciumento e controlador; Hans Werner Henze (Basil Eidenbenz), compositor que sonha em se casar com a poetisa; e Adolf Opel (Tobias Resch), seu acompanhante no deserto. Haverá outros no percurso (o que inclui uma cena de orgia envergonhadíssima), mas a cada briga com um pretendente, a artista afoga as mágoas no braço do homem seguinte. Afirma que nunca pretende se casar, nem possui a intenção de ter filhos. No entanto, o discurso prefere considerá-la uma eterna apaixonada, ao invés de uma mulher que desafiou as convenções de sua época.
Estamos na terra do artifício, da idealização. A diretora prefere enxergar na personagem um ícone feminino trágico, reforçando os motivos de sua derrocada.
Em primeiro lugar, ela será uma musa. “Sem você, não consigo criar!”, argumentam pelo menos dois homens. Logo, ela contribui à criação de escritores, compositores, tradutores, dramaturgos. A inspiração da própria heroína será uma fonte de mistério, posto que a paixão pelas palavras fica distante. Além disso, nunca lê livros ou consome outras formas de arte. Surpreende que a biografia de uma autora possa demonstrar interesse tão limitado nos poemas dela. Em geral, os versos são evocados pela boca de pretendentes, como forma de sedução (“Você realmente conhece o meu trabalho?”, exclama a heroína embasbacada); ou de maneira protocolar e desafetada em leituras públicas. O filme sobre uma poeta se mostra tristemente desprovido de poesia.
Em segundo lugar, ela se converte em porta-voz de um romantismo à moda antiga. A mulher recita clássicos da literatura francesa sobre uma ponte que atravessa o Rio Sena; troca juras de amor diante da bela paisagem de um parque verdejante; promete seu amor num passeio de carro pelas magníficas montanhas austríacas. No Egito, testemunha vários homens que tentam acender seu cigarro ao mesmo tempo (o clichê máximo desde Antonioni e Tornatore); e na Itália, é abraçada e acarinhada por todos os artistas, a ponto de sempre perceber algum conhecido pelas ruas.
Em terceiro lugar, representa uma forma de cinema à moda antiga. A briga feroz termina em beijo furioso e sexo selvagem, a som de pianos tristes; a bolsa derrubada no chão do bar desperta a ajuda imediata de inúmeros homens; a caminhada até a câmera se conclui com o foco no rosto da mulher que interpela o dispositivo e, por extensão, o espectador. Os diálogos incluem pérolas como “Prometa que nunca será infeliz!”, além de amantes furiosos que se acusam com o suporte de versos da literatura.
Estamos na terra do artifício, da idealização, ao invés da naturalidade de uma vida feminina qualquer. A diretora prefere enxergar na personagem um ícone feminino trágico, reforçando os motivos de sua derrocada. Recentemente, Vicky Krieps havia encarnado outra figura real, a imperatriz Sissi, no potente Corsage. Ela se deliciava em ironias e farsas, apontando a existência de uma subjetividade ímpar por trás da pompa requisitada à nobreza. Aqui, em contrapartida, entrega-se às demandas mais modestas da diretora. A atriz reforça a fala doce, o corpo sempre jogado em sofás, o olhar infantil. Com exceção de uma cena de briga, qualquer força lhe escapa.
A certa altura, Bachmann reflete acerca da origem do fascismo, sugerindo que esta dominação social teria surgido muito antes, nas relações entre marido e esposa. A teoria é interessantíssima, e poderia ser desenvolvida. Mais tarde, reflete sobre a natureza das cidades onde viveu; discute a tradução de poemas italianos; oferece explicações fascinantes a propósito da poesia como vocação ou profissão. Estas pistas apontam para o excelente filme que poderia ter surgido da mesma fonte de inspiração, caso o olhar da direção não estivesse tão focado nos quiproquós emotivos.
Assim, resta uma obra novelesca, assumidamente melodramática e kitsch. A experiência provocou risos na sala de cinema (a segunda vez para um filme alemão na 73ª edição da Berlinale), além de poucos aplausos burocráticos na conclusão. Margarethe von Trotta diminui nesta mulher aquilo que lhe tornou excepcional, preferindo limitá-la a uma amante disponível, e tolerante ao desmando dos homens. Se acaso lhe quiserem, Ingeborg Bachmann é dessas mulheres que só dizem sim. Por isso, corresponde quando a chamam, apieda-se quando a insultam.
Os desfalecimentos sucessivos no deserto, na cama de hospital, na chegada ao Egito, no sofá ao conhecer Adolf, dão conta de uma figura debilitada, porque tomada pelos sentimentos, em oposição aos homens práticos, movidos pela ação e pelo senso de negócios. Ora, existe uma diferença gritante entre efetuar uma obra moderna sobre mulheres à moda antiga, e efetuar uma obra antiga sobre mulheres à moda antiga. O drama jamais se esforça para se dissociar deste pensamento, nem analisá-lo de modo crítico. Após inúmeros casos de abuso e relacionamentos tóxicos na vida da biografada, acredita ter apresentado uma bela história de amores.