Este drama parte da compreensão que uma tragédia íntima é capaz de afetar muito mais pessoas do que aquelas diretamente envolvidas no caso. Logo, a violência se transforma numa questão social, ao invés de individual. Quando o estudante Alexandre Farel (Ben Attal) é acusado de estuprar Mila Wizman (Suzanne Jouannet), a filha do namorado de sua mãe, o caso repercute em pelo menos doze pessoas diferentes: seus pais, maridos, filhos, colegas de trabalho, amigos, advogados de ambas as partes. Todos serão cobrados pela maneira como educam os filhos e como se posicionam diante de um ato de violência.
O roteiro faz questão de tornar o tema ainda mais delicado à ciranda de personagens, fazendo com que cada um tenha algo a perder neste episódio: Jean Farel (Pierre Arditi), o avô do réu, pode deixar de receber a medalha de Legião da Honra pelo Estado francês; e a palestrante Claire Farel (Charlotte Gainsbourg) é questionada por sempre ter se posicionado contra estupradores, exigindo penas severas aos criminosos, até se ver confrontada ao caso contra o próprio filho. O texto evita abordar pessoas comuns, fáceis de se identificar, preferindo um grupo particularmente relacionado à imagem pública.
Logo, A Acusação abdica do naturalismo para aprofundar o teor de suspense e transformar o episódio num debate de sociedade oferecido ao público. Se a vítima não disse “não” aos avanços do garoto, nem tentou repeli-lo, mas ainda assim demonstrou a aversão ao sexo, o caso ainda é considerado estupro? As leis ainda podem julgar moralmente mulheres por terem bebido e usado drogas? Que papel desempenha a palavra das vítimas e dos réus neste caso, e como a justiça e os policiais agem face a situações do tipo?
O caráter monotemático poderia se tornar ainda mais escolar caso o drama não dedicasse 50 minutos a apresentar os personagens antes de introduzir o estupro. O diretor Yvan Attal deseja que o espectador conheça bem cada uma das pessoas envolvidas, de modo a evitar posicionamentos imediatos em favor dele ou dela. Alexandre e Mila nem sequer podem ser considerados os protagonistas de sua própria tragédia, dividindo o foco com inúmeras figuras de importância semelhante. Para o olhar da direção, todos são vítimas, destruídas em igual medida pelo caso.
O longa-metragem introduz um incômodo paralelismo, como se estivessem em jogo apenas a versão dela contra a versão dele, e ambas se equivalessem.
Neste aspecto, o projeto encontra seus pontos mais questionáveis. Começando pelo capítulo “Ele — Alexandre Farel”, privilegia inicialmente a perspectiva do menino. O texto revela o comportamento agressivo sexualmente, e possessivo em relação às mulheres. No entanto, corrobora o ponto de vista da antiga amante, Yasmina (Laëtitia Eïdo), para quem o caráter impulsivo do estudante de engenharia jamais poderia ser confundido com uma violência. O capítulo seguinte, dedicado à vítima, chega muito mais tarde na trama, quando nosso ponto de vista já foi condicionado a ficar mais perto do garoto do que da menina.
Uma vez introduzido o segmento “Argumentações finais”, quando promotor e advogado de defesa apresentam suas brilhantes falas nos tribunais, o longa-metragem introduz um incômodo paralelismo, como se estivessem em jogo apenas a versão dela contra a versão dele, e ambas se equivalessem. Talvez isso sirva ao domínio legal, porém não satisfaz num discurso artístico e cinematográfico. A câmera evita se posicionar junto à vítima, conferindo tanta atenção ao olhar tristonho do réu quanto à expressão abatida da vítima. Para a montagem, ambos são comparáveis. Duas vidas foram destruídas da mesma maneira.
Attal acredita estar construindo um opus de força e tensão. As cenas de tribunal apresentam uma inesperada câmera giratória, circulando o rosto dos representantes legais como se não desejasse perder uma única vírgula de suas palavras, uma mínima alteração das expressões faciais. A fotografia acentua os contrastes, reforça a nitidez e a frieza. A profundidade de campo se reduz, a montagem alterna entre diferentes rostos. Não é mais Alexandre quem está sendo julgado, e sim o estupro, o consentimento, e o olhar do espectador. Somos convidados a tomar partido e escolher um lado, ou acatar uma das duas falas.
O sofrimento de Mila é transformado em diversão e exemplo de causa, mero ponto de partida para a discussão de um tema. A maior prova da despersonalização da menina, e do esvaziamento psicológico da mesma, ocorre nos inesperados flashbacks da noite do crime, que nunca acrescentam nenhuma informação relevante aos autos, e preservam a dinâmica do “ele disse, ela disse”, conferindo atenção idêntica ao agressor e à vítima. A ambiguidade desta cena desperta a impressão de que “jamais saberemos a verdade” — uma informação verdadeira no domínio dos fatos, mas que minimiza o trauma da garota diante do ocorrido, como se a impossibilidade de saber o que ocorreu de fato diminuísse a importância de determinar um responsável.
Em outras palavras, A Acusação nunca se preocupa em honrar Mila, compreendê-la, nem demonstrar o peso do processo em sua vida pessoal. Uma vez ocorrido o crime, o texto salta 30 meses para o julgamento, e as dores pós-traumáticas serão deixadas à curiosidade do espectador, ocultadas pela elipse. Ela compõe mero peão no tabuleiro de falas e argumentações, onde sua voz não possui maior importância do que aquela de qualquer outro interessado no episódio. É louvável que o roteiro parta da compreensão do estupro enquanto fenômeno social, porém se torna lamentável que não permaneça junto à garota conforme a trama avança.
Por fim, o drama se apresenta como uma obra ponderada, de imagens austeras e distanciadas. Attal adota uma postura neutra, deixando todo a interpretação moral e política a cargo do espectador, e evitando se posicionar por conta própria. Apesar do veredito final, anunciado em voz off (sem permitir observar o rosto dos personagens no tribunal, nem acenar ao impacto do mesmo em suas vidas), resta a impressão de que Mila perdeu. “Este é o caso de Alexandre, não de Mila. É ele quem corre o risco de ficar na prisão”, alerta o advogado do garoto. De certo modo, o drama compactua com este ponto de vista.