Entre os preconceitos e equívocos envolvendo a direção de fotografia no cinema, um dos principais reside na crença comum de que o profissional se limitaria a “embelezar uma imagem”, ou retratar aquilo que o diretor lhe manda. Acredita-se que a equipe de cinematografia apenas iluminaria o espaço e gravaria as ações — razão pela qual se considera, tantas vezes, a fotografia enquanto categoria “técnica”, em detrimento de artística. É difícil encontrar na cinefilia vertentes que considerem o fotógrafo como autor, ou pelo menos, uma figura tão responsável por “contar uma história” quanto o diretor e roteirista.
Ora, Até o Cair da Noite seria um belo exemplo para se discutir a capacidade de storytelling da luz, dos enquadramentos, da profundidade de campo. Sem o trabalho de Reinhold Vorschneider, um dos melhores diretores de fotografia do cinema alemão contemporâneo, o resultado poderia ser um suspense policial banal, envolvendo amores proibidos, um cartel de drogas e chefões ameaçadores. Em outras palavras, a premissa não soava, no papel, muito promissora.
No entanto, a cena inicial do longa-metragem provoca uma surpresa. Um apartamento vazio começa a receber a visita de diversas pessoas, que decoram os cômodos. No entanto, elas estão borradas, superexpostas, como num baile de vultos. Determinado o cenário de uma festa de boas-vindas para Leni (Thea Ehre), começam os enquadramentos pouco usuais (vide as imagens em destaque abaixo): rostos colocados no mesmo eixo, porém virados para lados distintos; corpos separados por batentes e multiplicados por reflexos em simultâneo; ou ainda sobrepostos a sombras e outros objetos. Nosso primeiro contato com estes personagens ocorre de maneira difusa.
A ambientação se torna, portanto, um elemento fundamental à jornada. Nos locais bastante escuros, Vorschneider aplica inúmeras lâmpadas ou faróis de carro para promover um contraluz fortíssimo em Leni e no policial Robert (Timocin Ziegler), cuja mecha caída na testa cria um halo dourado em volta do rosto. A imagem representa as passagens de tempo através de sucessivos movimentos panorâmicos da esquerda para a direita, deslizando em velocidade idêntica, e gerando uma noção de acontecimentos cíclicos — culminando no giro em 360º.
Um filme noir à moda antiga. Há o herói infiltrado na gangue perigosa, a femme fatale, os planos escondidos. No fundo, o diretor acredita pouco na subtrama policial, que ocupa um papel menor, e teima a convencer.
Conhecemos os personagens e sua psicologia através das luzes, ao invés dos diálogos ou das reviravoltas. A iluminação extremamente contrastada, a textura de película e as cores “queimadas” reforçam a impressão de segredo, de algo escondido, enquanto valorizam as atitudes bruscas. Como a escuridão não revela nuances, é preciso que os atores briguem, se movam de maneira ainda mais expressiva. O jogo motiva corpos mais soltos, expressões marcadas no rosto, ações sem ambiguidade nem sutileza. É a direção de fotografia, não o roteiro, que nos conta sobre o aspecto tão frágil quanto agressivo dos personagens.
Este contexto favorece a premissa de um filme noir à moda antiga. Há o herói infiltrado na gangue perigosa, a femme fatale por quem ele se apaixona perdidamente, os planos escondidos, as trapaças surpreendentes. No fundo, o diretor Christoph Hochhäusler acredita pouco na subtrama policial, que ocupa um papel menor, e teima a convencer pelo baixo investimento em sua verossimilhança. Trata-se de uma gangue cujas drogas nunca se veem; uma rede criminosa gigantesca representada por um homem só; um centro de operações resumido a um apartamento comum e um computador disponível na mesa, para quem desejar acessá-lo. Com um pouco de humor, o material se prestaria a uma paródia do gênero.
Mesmo assim, o projeto insiste em se levar a sério até demais, acreditando nas negociações letais, e amores ainda mais letais. O filme se sai muito melhor enquanto drama, quando revela a saída de Leni da prisão, a relação problemática com Robert (que finge ser seu namorado, embora a ame de verdade), e os jogos de poder entre ambos. Às vezes, é ela quem detém as cartas e controla as atividades do investigador, às vezes, é ele quem lhe diz o que fazer, e restringe seus movimentos. O namoro se inicia como um tango — um avança, o outro recua — até se tornar a crônica de um relacionamento abusivo.
Este aspecto provoca certo incômodo, pela dificuldade em se distanciar dos personagens para observar o caráter tóxico da relação. Assim, passa a idealizar as chantagens, humilhações, agressões, provindas de um homem que “ama demais” e não controla seus impulsos, com medo de perder a mulher amada. Conforme a narrativa se afasta de Leni, pendendo em favor de Robert enquanto real protagonista (ela será esquecida durante parte considerável do terço central), o ponto de vista o beneficia, justificando suas ações e colocando-se junto ao sujeito abusador.
Logo, o anti-herói ameaça se converter em herói tradicional, cuja violência se defende pela inabilidade em amar — pobre dele, que nunca foi ensinado a tal. No carro, promete milagres à sua querida: “Quer que eu pare a chuva?”. A música melodiosa no rádio sugere uma valsa de amores antigos. Adiante, no mesmo carro, eles são separados por um vidro, mas fazem amor apesar da barreira transparente. O roteiro possui a certeza de contar uma história fascinante de sentimentos e traições, sem perceber o caráter condescendente em relação ao policial, e a postura passiva na qual a mulher é progressivamente colocada.
Till the End of the Night (título internacional) constrói metáforas inesperadas para representar o amor profundo. Trata-se de cenas tão solenes que se aproximam do patético — este é o segundo filme alemão com a mesma característica no Festival de Berlim 2023, após Someday We’ll Tell Each Other Everything. Uma mulher descreve seu relacionamento (igualmente tóxico) com o marido traficante através de trufas de chocolate, revelando os sabores que a encantam, e aqueles que a enojam. Robert se irrita com os bichos de pelúcia de Leni, que continua jogando em direção a ela. É possível debochar destas imagens, ou se seduzir por elas, dependendo do grau de sensibilidade do espectador.
Por fim, a obra carrega o mérito de sua confiança. O diretor demonstra certeza em seu procedimento, sua fotografia e direção de atores, que prefere o maneirismo ao naturalismo. Quanto mais se afasta do romance para resolver o quiproquó policial, mais Timocin Ziegler intensifica os tiques, o olhar soturno, a composição embrutecida com as roupas escuras e os cabelos engordurados. Victor Arth (Michael Sideris) carrega os traços do playboy arrogante, com suas camisas estampadas e objetos de grife. Nenhum personagem desta ciranda escapa ao imaginário popular, cartunesco, do cinema noir.
A obra gosta de brincar de ser árida, impiedosa, moralmente ambígua, repleta de personagens de fundo doce, precisando vestir uma roupagem caricatural para sobreviver neste ambiente masculino e impiedoso — vide a composição tragicômica da chefe, ou a tendência a esquecer Nicole (Ioana Iacob) quando não serve mais ao desenlace do suspense. O filme elabora personagens fascinantes e realistas, porém presos a um mundo caricatural, estilizado até demais. De tanto posar como durão e agressivo, começa a acreditar em sua própria farsa.