Cidade; Campo (2024)

Fantasmas do século XXI

título original (ano)
Cidade; Campo (2024)
país
Brasil, Alemanha, França
gênero
Drama
duração
119 minutos
direção
Juliana Rojas
elenco
Fernanda Vianna, Mirella Façanha, Bruna Linzmeyer, Kalleb Oliveira, Andrea Marquee, Preta Ferreira, Marcos de Andrade, Nilcéia Vicente
visto em
74º Festival de Cinema de Berlim (2024)

A princípio, as imagens nos sugerem um drama social clássico. Joana (Fernanda Vianna) chega a São Paulo para morar temporariamente na casa de familiares. Afinal, sua casa no interior de Minas Gerais foi completamente destruída pelo estouro da barragem de Mariana. Ela se acomoda como pode, conversa com a irmã, aproxima-se do sobrinho-neto. Sustenta uma melancolia no olhar de quem acaba de atravessar um baque, mas já passou por outros traumas pesados, e sobreviveu. Em outras palavras, encontra-se triste, não desesperada.

Por isso, quando começam a aparecer alguns indícios estranhos (um pesadelo aqui, um vulto acolá), a mulher permanece atenta, porém não grita, nem foge. E fugiria para onde? Um dos elementos mais impressionante de Cidade; Campo diz respeito à naturalidade do trauma e de suas consequências psíquicas. O cinema convencional transformaria esta dor num evento de grandes proporções para despertar empatia do espectador. Já a diretora Juliana Rojas admira estas pessoas com um carinho distanciado, sem piedade. Estão em dificuldade, assim como todas as mulheres ao redor. Seguem em frente.

Logo, a intrusão de elementos fantásticos provoca a curiosa sensação de um não-evento. Joana convive com fantasmas que jamais lhe tiram o sono, nem a impedem de trabalhar. A mulher não pode se dar ao luxo de parar e assimilar a dor da tragédia recente. Portanto, inscreve-se num aplicativo de faxinas em domicílio, busca uma maneira de ajudar a irmã, enquanto se aproxima das colegas da limpeza.

O mesmo pode ser dito da segunda metade da trama. Se Joana partia do campo à cidade, o casal formado por Flávia (Mirella Façanha) e Mara (Bruna Linzmeyer) parte da cidade ao campo. Devido a uma herança, mudam-se ao sítio e passam a cuidar das vacas, porcos e galinhas. Sempre sonharam em experimentar a rotina pacífica do campo, até perceberem que, uma vez mais, existem perigos específicos (sobretudo às mulheres) em ambientes remotos, onde a polícia raramente presta auxílio.

Estas heroínas contam apenas com outras mulheres, em famílias gerenciadas por matriarcas. Os homens constituem traumas, lembranças, elementos do passado. O futuro é feminino.

A estrutura de partes espelhadas já tinha aparecido no cinema de Juliana Rojas em As Boas Maneiras (2017), co-dirigido com Marco Dutra. O plano de detalhe nas mãos dadas no escuro, mediante o perigo, também decorrem diretamente do imaginário desta obra. Um instante sombrio remete a O Duplo (2012), e os números musicais de letras tristes, cantados pelos atores em frente às câmeras, repetem o procedimento de Sinfonia da Necrópole (2014). Aqui, a cineasta está em casa.

Através das protagonistas, discute questões de gênero e sexualidade, retratadas com bem-vinda naturalidade. No entanto, os conflitos surgem da presença de vozes pela região, passos escutados à noite, e pela presença de figuras masculinas ao redor, sugerindo ao casal que comprem uma arma… É impressionante como, nos filmes de temática lésbica do Festival de Berlim, as armas de fogo se convertem em ícone masculino por excelência, rejeitado pelas protagonistas que preferem se defender de outra maneira. Love Lies Bleeding demonstrava semelhante aversão pelo objeto fálico e pelo princípio da vingança enquanto gesto de honra.

Rojas prefere sugerir males e monstruosidades que jamais se concretizam enquanto tal. Durante a viagem de ayahuasca, a câmera permanece junto à personagem sã e consciente, ao invés de enveredar pela floresta com aquela que atravessa uma experiência mais forte. Eventuais assombrações serão vistas à distância, sem representar real ameaça às mulheres — talvez as criaturas apenas desejem viver em paz, sem a presença dos humanos ao redor. Algumas delas, vejam só, ostentam impressionante instinto materno.

O espelhamento entre as metades provoca os melhores momentos do longa-metragem. O uso de espelhos e reflexos conecta belamente as experiências de Joana e Flávia; além dos dois potentes números musicais — Bruna Linzmeyer impressiona bastante em termos de construção corporal. Apesar de se encontrarem em geografias distintas, e pertencerem a gerações diferentes, estas heroínas contam apenas com outras mulheres, em famílias gerenciadas por matriarcas. Os homens constituem traumas, lembranças, elementos do passado. O futuro é feminino.

O procedimento encanta pela sutileza ao introduzir sobreposições, despertando a aparência de sonho. Para cada imagem de construção acadêmica (os planos fixos, focados nos rostos, com as personagens posicionadas no centro do quadro), existe alguma abertura delicada ao estranhamento (a água escura da pia, o sangue sobre a roupa). Talvez os indícios sejam pequenos até demais para justificar a reviravolta rumo ao clímax (“Nada aqui dá certo. Você passa o dia cercada de morte”), mas ainda interessam enquanto preparação progressiva ao clímax.

Por fim, o longa-metragem se sobressai pelo comedimento, evitando reviravoltas espetaculares ou instantes de catarse propícios ao terror comercial. Cidade; Campo deixa que as possibilidades de horror sejam completadas pelo imaginário do espectador. Quanto às protagonistas, os fenômenos provocam impacto, mas não as paralisam. Nesta trama, os elementos realmente assustadores provêm da precarização do trabalho, do genocídio indígena, do estouro de uma barragem, das relações de força em meios campestres. O real se torna mais perigoso do que os percalços sobrenaturais pelo caminho. 

PS: Como é fascinante a imagem de um cavalo, parado, em meio a uma avenida. O recurso constituía um dos principais focos do excelente Ainda Restarão Robôs nas Ruas do Interior Profundo, de Guilherme Xavier Ribeiro, e retorna aqui. Uma das representações mais potentes do embate nacional entre centro e margem, ou entre campo e interior, reside nesta figura do animal perdido sobre o concreto inóspito. 

Cidade; Campo (2024)
7
Nota 7/10

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