É provável que qualquer espectador percebesse, em poucos minutos de projeção, os objetivos dos criadores com este projeto. Da Porta pra Fora acompanha os motoboys durante o início da pandemia de Covid-19, expondo-se ao risco nas ruas para garantir o sustento das famílias. Não restam dúvidas de que o cineasta Thiago Foresti se posiciona junto a estes profissionais, e contra as grandes empresas de aplicativo que exploram o trabalho a baixo custo.
Mesmo assim, os letreiros iniciais transmitem uma sinceridade e um didatismo inesperados: a obra revela suas intenções (denunciar a exploração dos gigantes do delivery), e explica a decisão de não citar nominalmente marcas como Uber Eats, iFood, Rappi, Loggi por medo de represália judicial. Logo, marcas são desfocadas na imagem, enquanto se suprime as menções sonoras com o mesmo “bip” utilizado para esconder um palavrão — escolha curiosa, aliás. “Eis o que eu queria mostrar, e taí os motivos pelos quais não mostro determinadas coisas”, parece nos dizer o filme. Como são estranhas as narrativas que começam com um manual de instruções.
Passados os avisos iniciais, as escolhas estéticas saltam aos olhos muito antes de se perceber a trinca de personagens. A montagem profundamente intervencionista de Daniel Sena se apropria do material bruto enquanto mera argila com a qual pode fabricar a escultura de sua preferência. Por isso, ele intercala cenas aceleradas, em câmera lenta, sobreposições, imagens em preto e branco com pontos coloridos, imagens saturadas (com filtro HDR?), efeitos digitais de chuva e raio, etc. A edição e a pós-produção se divertem com a possibilidade de executar tudo e qualquer coisa.
Distorce-se o som, a imagem, a perspectiva, a profundidade de campo. O resultado se condiciona à estrutura das redes sociais e à velocidade da Internet.
Ela chega perto de uma liberdade inconsequente e aleatória nas escolhas de linguagem ao misturar cenas contemplativas, em câmera fixa, e os deslocamentos frenéticos dos motoboys. Utiliza-se objetivas normais, grandes angulares “comuns” e outras ao nível do olho de peixe. Distorce-se o som, a imagem, a perspectiva, a profundidade de campo. A trilha sonora oferece música atrás de música, temendo o silêncio, ou a reflexão decorrente dele. Na busca de uma provável imersão do espectador, oferece uma obra pop, agitada, preocupada em agradar ao público amplo.
Por isso, o resultado se condiciona à estrutura das redes sociais e à velocidade da Internet. No meio da crítica de cinema, rotular uma obra de “cinema TikTok” tem se tornado uma muleta fácil para desqualificar as iniciativas fragmentadas e aceleradas. No entanto, o termo se justifica diante de projetos que privilegiam o apelo ao público em detrimento da capacidade de articulação de ideias e conceitos. O cinema-sensação, ou cinema-espetáculo, encontra seu habitat natural nas mídias virtuais. Da Porta pra Fora visa constituir, guardadas as proporções, um blockbuster documentário.
O diretor escolhe três personagens complexos para representarem a classe trabalhadora de motoboys no Distrito Federal. Alessandro da Conceição, Keliane Alves e Marcos Nunes expõem com humildade e franqueza sua vida familiar e afetiva (com o devido respeito à privacidade), a interação com os amigos, os posicionamentos distintos a respeito da pandemia de Covid-19. Confessam seus sonhos, traumas e o prazer de trabalharem pelas ruas.
O trio se expressa com clareza, sobretudo através das imagens captadas por si próprios. O recurso se justifica não apenas por medidas sanitárias (reduzindo o contato da equipe com os personagens), mas pela vontade de registrar a maneira como os protagonistas enxergam a si mesmos, e quais aspectos de sua rotina eles pretendem valorizar. A época da autoimagem, de produção via telefone celular e captação móvel, favorece esta forma de cinema-testemunho enquanto sintoma de uma época. O dispositivo permite, igualmente, aprofundar a noção de protagonismo oferecida a indivíduos invisibilizados socialmente.
Thiago Foresti procura aprofundar relações ideológicas ao questioná-los a respeito do apoio ou rejeição a Jair Bolsonaro pela gestão da crise do coronavírus. Assim, reflete a evolução de pensamentos e a tendência de alguns segmentos desfavorecidos em apoiar as medidas liberais (para dizer o mínimo) do ex-presidente. Estas abordagens soam um tanto abruptas — tão acessórias quanto as conversas de grupo de WhatsApp materializadas na tela —, porém revelam as ambições sociológicas do autor.
No entanto, o resultado carece de cadência e ritmo (o que se difere de aceleração). A sequência de “Deus é Deus” se estende excessivamente, já a confissão de Keliane a respeito do sonho em se tornar cantora se torna repetitiva. A divisão da narrativa em meses da pandemia (abril de 2020, maio de 2020, etc.) pouco favorece a compreensão do aprofundamento dos riscos, ou a degradação das leis trabalhistas.
Os efeitos do vírus, em si, aparecem raramente, assim como as medidas sanitárias. O foco permanece indefinido entre os riscos face ao vírus e a exploração trabalhista por multinacionais. Mesmo que não cite o nome das empresas, o roteiro poderia se aprofundar nas práticas dessa relação laboral abusiva, em termos de horas, valor inicial, taxa repassada aos motoboys, etc. O roteiro promete se focar nas questões legislativas e trabalhistas, para então abordá-las de maneira vaga — as menções a demandas específicas surgem esparsamente, durante os breques da categoria.
Por fim, Da Porta pra Fora resultaria numa obra mais madura caso permitisse ao resultado respirar. Havia material suficiente de discussão e diálogo, sem a necessidade de maquiá-lo com inúmeras canções, cortes e filtros. A decoração opressora das imagens chama tamanha atenção a si própria que rouba o protagonismo dos três personagens centrais e atenua o humanismo da obra. As pretensões políticas do autor casam mal com a linguagem sensacionalista.