Faruk (2024)

Meu pai, meu personagem, meu filme

título original (ano)
Faruk (2024)
país
Alemanha, Turquia, França
linguagem
Documentário, Drama
duração
97 minutos
direção
Aslı Özge
com
Faruk Özge, Derya Erkenci, Gönül Gezer, Nurdan Çakmak, Semih Arslanoğlu, Fikret Özge
visto em
74º Festival de Cinema de Berlim (2024)

Precisamos debater a onda crescente de biografias familiares, quando os diretores elaboram um documentário a respeito de seus pais, tios e avós. Compreende-se o motivo pelo qual estas produções se multiplicaram vertiginosamente nos últimos vinte anos. Na dificuldade de financiar obras a respeito de temas distantes e difíceis de apreender (em termos de locais, materiais, etc.), o avô ou pai soa acessível, factível — ele está logo ali, e as caixas de papelão com fitas VHS devem estar perdidas em algum canto da garagem.

Além disso, a lógica do “fale de sua aldeia e estará falando do mundo” tem sido aplicada de maneira quase literal, quando os diretores acreditam que toda a política nacional, as questões de classe, gênero e raça estariam contidas num único núcleo familiar. A situação se agravou durante a pandemia, quando os diretores, por motivos óbvios, precisaram voltar as câmeras a si próprios e aos familiares. Vieram então, no caso do cinema brasileiro, Os Dias com Ele, Bem-Vindos de Novo, O Futebol, Eneida, Construindo Pontes, Elena, Casa, Neirud, Vai e Vem, O Dia da Posse, Elegia de um Crime, Nossa Mãe Era Atriz, Incompatível com a Vida, Seu Cavalcanti, Retratos Fantasmas, Marinheiro das Montanhas, etc.

O personagem é infantilizado, visto como passivo e pouco inteligente. Faruk não teria muito de que se orgulhar diante desta representação com aparência de acerto de contas.

Após dezenas de obras nesta direção, começa-se a constatar um incômodo desgaste nas representações de si e do outro. Em primeiro lugar, muitos autores buscam legitimar suas propostas graças ao afeto evidente que nutrem pelo personagem principal. Estimam que o valor de sua iniciativa reside no caráter confessional e caseiro, no ato de compartilhar esta pessoa querida, e ainda anônima, com o resto do mundo. Em segundo lugar, o corpo de obras revela que o verdadeiro protagonista, em diversas narrativas, é o próprio realizador, em detrimento do tio-pai-avô que estampa o cartaz.

Multiplicaram-se as narrações em off dos próprios diretores oferecendo suas perspectivas íntimas a respeito dos parentes (como se o ato de filmá-los e editá-los não imprimisse um ponto de vista em si mesmo). Os autores se convertem em personagens através dos materiais de arquivo, revelando-se em cenas cotidianas ao lado deles. Demonstram sua intimidade profunda ao registrá-los tomando banho, dormindo, exercendo manias que apenas uma pessoa próxima conheceria. Este acesso quase irrestrito ao outro denota uma sensação de poder irresistível a tantos criadores, que se permitem fazer com seus familiares algo que provavelmente não fariam com atores profissionais.

Estas reflexões permitem chegar ao documentário-drama turco Faruk, dirigido Aslı Özge. A cineasta busca acompanhar o dia a dia do pai, um senhor que vivia sozinho num prédio, até descobrir que o edifício seria demolido, e precisaria encontrar outro lugar para viver. Passada a demolição, a cineasta recria as reuniões de condomínio, as discussões com moradores e advogados.

Ora, o longa-metragem manifesta todos os aspectos eticamente contestáveis listados acima, em chave exponencial. Representa um caso raro, de tudo o que pode dar errado na estrutura do vou-fazer-um-filme-sobre-meu-pai. Ele incomoda muitíssimo, cena a cena, e mesmo vencido o caráter explorador dos trechos iniciais, resta uma quantidade inesperada de perversidade da cineasta em relação ao pai na segunda metade. Caso alguém desejasse utilizar uma única obra para descartar, pejorativamente, a onda de biografias familiares na totalidade — e os dezesseis títulos brasileiros listados acima são melhores do que este —, Faruk constituiria um exemplo perfeito até demais.

A diretora insiste em reafirmar seu controle sobre a cena e o ator principal. Ela fornece ao senhor de mais de 90 anos algumas falas para repetir, e em seguida pede novas entonações, solicita variações de gestos. Filma o pai dormindo, apenas para mostrar o fato de podê-lo enquadrar em diversos ângulos diferentes enquanto ronca. Pede que ele flexione os músculos, olhe para o próprio corpo, ponha as mãos na cintura, somente porque tem o poder de fazê-lo — estes fragmentos não desempenham nenhuma função na narrativa. Qualquer pedido é prontamente atendido pelo senhor. Então a filha se deleita com a inversão de papéis: quem dá as ordens agora?

Nas encenações fictícias, Faruk Özge jamais se converte em protagonista. O homem é limitado à posição de ouvinte, enquanto as pessoas ao redor lidam com algum conflito mais urgente. Alguém declara que um homem morreu no metrô; outros brigam durante o enterro; e duas mulheres passam pelo protagonista no parque sem percebê-lo. Enquanto personagem, ele nunca tem o que fazer na trama supostamente dedicada à sua pessoa. A cineasta jamais permite que ele controle o ponto de vista: o homem será rigidamente objetificado, transformado num acessório inerte, quase uma marionete para esta direção perversa.

A respeito de perversões, a filha pede ao pai que se dispa, na intenção de filmar a cena em que uma modelo de lingerie, completamente nua, o convidaria para o ato sexual. Esta interação se encerra com o “Corta!” da direção, deixando claro que nenhum contato erótico ocorreu de fato com a mulher mais jovem. Ora, por que então simular este instante patético, exceto para ridicularizar o corpo e a fragilidade do pai? Por que tamanho deboche pela sexualidade de um homem em final de vida? 

Algo semelhante ocorre com a sequência, intensamente decupada, dos testes para alegar a saúde mental de Faruk. O personagem é infantilizado, visto como pouco inteligente, além de bastante passivo. Na segunda metade, a montagem inclui algumas fotos esparsas deste homem com a esposa, lembrando que, décadas atrás, foi mais ativo e participativo. Hoje, limita-se a um corpo em movimento, que a mise en scène gosta de torcer para cá e para lá como faria a um boneco de massinha. 

Se este senhor tem posições políticas fortes, se possui projetos, arrependimentos, se trabalhou muito, se possui alguma reflexão a respeito da sociedade turca atual, nunca saberemos. Ele não afirma nada que não esteja previamente escrito e encenado pela filha. A situação se agrava com as sequências do apartamento sendo esvaziado, e com as viagens ininterruptas da cineasta. Através de conversas telefônicas em off (ficcionalizadas, uma vez mais), ela afirma que não tem tempo de vê-lo, nem pode comparecer ao aniversário, ou ajudá-lo com a mudança, pois tem filmes a fazer. Mesmo ausente das cenas — porque, dentro da ficção, encontra-se em outro país —, o olhar continua sendo rigidamente o dela a respeito deste sujeito.

Assim, além de diminuir o valor de seu percurso e insistir na proximidade da morte (o tema domina as conversas de terceiros), Aslı Özge ainda representa o abandono, o desprezo, ou pelo menos o fato de que o pai não constitui uma prioridade em sua vida. Primeiro viria o cinema, algo que esta direção narcísica atesta muito bem. A conclusão transborda de desprezo: após longas discussões a respeito do novo apartamento onde Faruk viveria, o senhor é informado pelo corretor que o imóvel foi vendido, embora a filha tenha esquecido de avisar ao pai. 

O homem será visto caminhando cabisbaixo, ao longe, abandonado pelo enquadramento. A última palavra cabe literalmente à diretora, que declara de uma vez por todas que a única decisão importante seria a sua — pouco importa o que o senhor idoso teria a dizer. Por trás da aparência alegre e colorida (decorrente de um homem de 95 anos se ridicularizando em gesto de confiança à filha artista), resta um fetiche sádico de dominação através do cinema. Se o intuito era prestar homenagem ao pai, o projeto passa muito longe do alvo. A diretora ergue apenas um pedestal a si própria, na função de criadora de mundos e controladora de narrativas. Faruk não teria muito de que se orgulhar diante desta representação com aparência de acerto de contas.

Faruk (2024)
2
Nota 2/10

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