Precisamos debater a onda crescente de biografias familiares, quando os diretores elaboram um documentário a respeito de seus pais, tios e avós. Compreende-se o motivo pelo qual estas produções se multiplicaram vertiginosamente nos últimos vinte anos. Na dificuldade de financiar obras a respeito de temas distantes e difíceis de apreender (em termos de locais, materiais, etc.), o avô ou pai soa acessível, factível — ele está logo ali, e as caixas de papelão com fitas VHS devem estar perdidas em algum canto da garagem.
Além disso, a lógica do “fale de sua aldeia e estará falando do mundo” tem sido aplicada de maneira quase literal, quando os diretores acreditam que toda a política nacional, as questões de classe, gênero e raça estariam contidas num único núcleo familiar. A situação se agravou durante a pandemia, quando os diretores, por motivos óbvios, precisaram voltar as câmeras a si próprios e aos familiares. Vieram então, no caso do cinema brasileiro, Os Dias com Ele, Bem-Vindos de Novo, O Futebol, Eneida, Construindo Pontes, Elena, Casa, Neirud, Vai e Vem, O Dia da Posse, Elegia de um Crime, Nossa Mãe Era Atriz, Incompatível com a Vida, Seu Cavalcanti, Retratos Fantasmas, Marinheiro das Montanhas, etc.
O personagem é infantilizado, visto como passivo e pouco inteligente. Faruk não teria muito de que se orgulhar diante desta representação com aparência de acerto de contas.
Após dezenas de obras nesta direção, começa-se a constatar um incômodo desgaste nas representações de si e do outro. Em primeiro lugar, muitos autores buscam legitimar suas propostas graças ao afeto evidente que nutrem pelo personagem principal. Estimam que o valor de sua iniciativa reside no caráter confessional e caseiro, no ato de compartilhar esta pessoa querida, e ainda anônima, com o resto do mundo. Em segundo lugar, o corpo de obras revela que o verdadeiro protagonista, em diversas narrativas, é o próprio realizador, em detrimento do tio-pai-avô que estampa o cartaz.
Multiplicaram-se as narrações em off dos próprios diretores oferecendo suas perspectivas íntimas a respeito dos parentes (como se o ato de filmá-los e editá-los não imprimisse um ponto de vista em si mesmo). Os autores se convertem em personagens através dos materiais de arquivo, revelando-se em cenas cotidianas ao lado deles. Demonstram sua intimidade profunda ao registrá-los tomando banho, dormindo, exercendo manias que apenas uma pessoa próxima conheceria. Este acesso quase irrestrito ao outro denota uma sensação de poder irresistível a tantos criadores, que se permitem fazer com seus familiares algo que provavelmente não fariam com atores profissionais.
Estas reflexões permitem chegar ao documentário-drama turco Faruk, dirigido Aslı Özge. A cineasta busca acompanhar o dia a dia do pai, um senhor que vivia sozinho num prédio, até descobrir que o edifício seria demolido, e precisaria encontrar outro lugar para viver. Passada a demolição, a cineasta recria as reuniões de condomínio, as discussões com moradores e advogados.
Ora, o longa-metragem manifesta todos os aspectos eticamente contestáveis listados acima, em chave exponencial. Representa um caso raro, de tudo o que pode dar errado na estrutura do vou-fazer-um-filme-sobre-meu-pai. Ele incomoda muitíssimo, cena a cena, e mesmo vencido o caráter explorador dos trechos iniciais, resta uma quantidade inesperada de perversidade da cineasta em relação ao pai na segunda metade. Caso alguém desejasse utilizar uma única obra para descartar, pejorativamente, a onda de biografias familiares na totalidade — e os dezesseis títulos brasileiros listados acima são melhores do que este —, Faruk constituiria um exemplo perfeito até demais.
A diretora insiste em reafirmar seu controle sobre a cena e o ator principal. Ela fornece ao senhor de mais de 90 anos algumas falas para repetir, e em seguida pede novas entonações, solicita variações de gestos. Filma o pai dormindo, apenas para mostrar o fato de podê-lo enquadrar em diversos ângulos diferentes enquanto ronca. Pede que ele flexione os músculos, olhe para o próprio corpo, ponha as mãos na cintura, somente porque tem o poder de fazê-lo — estes fragmentos não desempenham nenhuma função na narrativa. Qualquer pedido é prontamente atendido pelo senhor. Então a filha se deleita com a inversão de papéis: quem dá as ordens agora?
Nas encenações fictícias, Faruk Özge jamais se converte em protagonista. O homem é limitado à posição de ouvinte, enquanto as pessoas ao redor lidam com algum conflito mais urgente. Alguém declara que um homem morreu no metrô; outros brigam durante o enterro; e duas mulheres passam pelo protagonista no parque sem percebê-lo. Enquanto personagem, ele nunca tem o que fazer na trama supostamente dedicada à sua pessoa. A cineasta jamais permite que ele controle o ponto de vista: o homem será rigidamente objetificado, transformado num acessório inerte, quase uma marionete para esta direção perversa.
A respeito de perversões, a filha pede ao pai que se dispa, na intenção de filmar a cena em que uma modelo de lingerie, completamente nua, o convidaria para o ato sexual. Esta interação se encerra com o “Corta!” da direção, deixando claro que nenhum contato erótico ocorreu de fato com a mulher mais jovem. Ora, por que então simular este instante patético, exceto para ridicularizar o corpo e a fragilidade do pai? Por que tamanho deboche pela sexualidade de um homem em final de vida?
Algo semelhante ocorre com a sequência, intensamente decupada, dos testes para alegar a saúde mental de Faruk. O personagem é infantilizado, visto como pouco inteligente, além de bastante passivo. Na segunda metade, a montagem inclui algumas fotos esparsas deste homem com a esposa, lembrando que, décadas atrás, foi mais ativo e participativo. Hoje, limita-se a um corpo em movimento, que a mise en scène gosta de torcer para cá e para lá como faria a um boneco de massinha.
Se este senhor tem posições políticas fortes, se possui projetos, arrependimentos, se trabalhou muito, se possui alguma reflexão a respeito da sociedade turca atual, nunca saberemos. Ele não afirma nada que não esteja previamente escrito e encenado pela filha. A situação se agrava com as sequências do apartamento sendo esvaziado, e com as viagens ininterruptas da cineasta. Através de conversas telefônicas em off (ficcionalizadas, uma vez mais), ela afirma que não tem tempo de vê-lo, nem pode comparecer ao aniversário, ou ajudá-lo com a mudança, pois tem filmes a fazer. Mesmo ausente das cenas — porque, dentro da ficção, encontra-se em outro país —, o olhar continua sendo rigidamente o dela a respeito deste sujeito.
Assim, além de diminuir o valor de seu percurso e insistir na proximidade da morte (o tema domina as conversas de terceiros), Aslı Özge ainda representa o abandono, o desprezo, ou pelo menos o fato de que o pai não constitui uma prioridade em sua vida. Primeiro viria o cinema, algo que esta direção narcísica atesta muito bem. A conclusão transborda de desprezo: após longas discussões a respeito do novo apartamento onde Faruk viveria, o senhor é informado pelo corretor que o imóvel foi vendido, embora a filha tenha esquecido de avisar ao pai.
O homem será visto caminhando cabisbaixo, ao longe, abandonado pelo enquadramento. A última palavra cabe literalmente à diretora, que declara de uma vez por todas que a única decisão importante seria a sua — pouco importa o que o senhor idoso teria a dizer. Por trás da aparência alegre e colorida (decorrente de um homem de 95 anos se ridicularizando em gesto de confiança à filha artista), resta um fetiche sádico de dominação através do cinema. Se o intuito era prestar homenagem ao pai, o projeto passa muito longe do alvo. A diretora ergue apenas um pedestal a si própria, na função de criadora de mundos e controladora de narrativas. Faruk não teria muito de que se orgulhar diante desta representação com aparência de acerto de contas.