As intenções de Malgorzata Szumowska e Michal Englert são claras neste projeto. A dupla deseja denunciar a LGBTQfobia na Polônia, país que dificulta ao máximo o reconhecimento médico e institucional de pessoas trans. Por isso, elege uma protagonista trans, descobrindo desde a mais tenra infância a sua identidade de gênero, que lhe traz angústia e dúvidas durante décadas. Apenas aos 45 anos ela tem a coragem de viver plenamente a sexualidade e aparência que lhe condizem.
Embora trabalhem com um roteiro original, de sua própria autoria, os criadores despertam a impressão curiosa de partirem de uma adaptação literária. Afinal, percebe-se esta vontade abrangente de acompanhar uma vida do nascimento ao túmulo, narrando uma dezena de encontros amorosos, problemas familiares, mudanças de profissão e cidade. A cada conflito resolvido, pula-se ao dilema seguinte, de maneira sequencial, como se não houvesse um objetivo neste recorte preciso — conta-se o máximo que couber na narrativa. Os diretores aparentam não querer deixar de fora nenhum capítulo ou diálogo do extenso romance de origem — exceto pelo fato de não haver livro nenhum no qual se basear.
Na cena inicial, revelam a pequena Aniela Wesoły, ainda em sua identidade masculina, roubando a grinalda da noiva durante um casamento e fugindo com o item precioso. Este será o item escolhido para definir a heroína, desde o primeiro momento: a inadequação de gênero. Em seguida, pintará as unhas do pé, deixará o cabelo crescer. Reprimindo a percepção do gênero feminino, casa-se com uma mulher gentil, com quem faz sexo intenso diversas vezes — mais uma vez, estima-se necessário resumir à personagem ao potencial e às configurações do corpo.
Há evidentes problemas de representatividade, posicionamento político, estético e de ponto de vista. Mulher de… soa como uma experiência antiquada, tal qual as obras que Hollywood fazia nos anos 1970 a 1990.
O roteiro insiste, ano após ano, na autodescoberta progressiva. As datas desfilam na tela, como se fizesse alguma diferença à trama, e ao espectador, que tal incidente se passe em 2006 ou 2008. Chegamos às vestimentas femininas, à repressão por líderes religiosos, à rejeição de familiares, ao desgaste do relacionamento com a esposa. A montagem se encaminha ao desenvolvimento de-lagarta-a-borboleta, estimando oferecer alguma surpresa ao espectador. Posto que anuncia a questão da sexualidade através de dezenas de metáforas (o namorado entrega de presente à pretendente o pênis de uma estátua), basta somente aguardar a concretização prometida da aceitação da heroína.
Entretanto, diversos problemas atrapalham este percurso benevolente e piedoso. Em primeiro lugar, a insistência no sofrimento da protagonista. Para que o espectador torça por ela e se afeiçoe à mulher trans, estima ser necessário reduzi-la ao calvário de sua identidade de gênero. Conforme mergulha no processo de transformação de Aniela, o longa-metragem dispensa trocas de afeto, ambições profissionais, posicionamentos acerca da política, da religião, da vida em comunidade. A mulher se limita ao único conflito opressor, que parece persegui-la do início ao fim.
Em segundo lugar, o discurso se dirige essencialmente a pessoas heterossexuais, a quem se solicita tolerância e aceitação. Os motivos são menos humanistas (“Aniela é uma de nós”), do que paternalistas e condescendentes (“Tenha pena, pega leve, porque ela já tem uma vida horrível”). Para isso, é preciso sublinhar todas as passagens ruins (o sexo abusivo, a demissão por motivos transfóbicos, o assédio moral do sistema jurídico), e atenuar, ou nem mesmo citar, as passagens positivas. Como se sente Aniela quando enfim descobre o prazer sexual enquanto mulher? Quando enxerga a transformação de sua aparência?
Em terceiro lugar, Szumowska e Englert tendem a uma espetacularização perigosa do corpo trans, que parece se equivaler à subjetividade da protagonista. Sutil a princípio, o roteiro se torna obcecado com a possibilidade de uma redesignação de gênero, até chegar ao temido, e explorador, plano próximo do pênis durante a cena de banho. Não bastasse a nudez, a montagem ainda aproxima a imagem para sublinhar a genitália masculina. A presença ou ausência do pênis adquire importância muito maior do que a alteração de nome nos registros, ou a convivência com outras mulheres numa penitenciária. O corpo trans se converte em fetiche da direção.
Além disso, os autores escalam para o papel central uma atriz cisgênero. Eles explicaram em entrevistas que não havia nenhuma atriz transexual na faixa de 40-50 anos na Polônia, capaz de interpretar o papel. Ora, o que dizer das infinitas possibilidades de trabalhar com atrizes não-profissionais? A escolha de uma dezena de pessoas trans em papéis coadjuvantes apenas reforça a compreensão de que havia, sim, indivíduos passíveis de escalação, porém a identidade de gênero não pareceu mais importante aos cineastas do que a experiência profissional… em um filme sobre a identidade de gênero.
Para coroar a experiência amarga, Mulher de… carrega uma estética de blockbuster e biopic, incorporando inúmeros planos multicoloridos, angulados, repletos de flares e cenas em contraluz. Valorizam-se os instantes na multidão, a riqueza e beleza dos cenários (o dito “valor de produção”), a caracterização de época evoluindo ao longo de quatro décadas. Para um tema tão marginal, o projeto contou com recursos bastante confortáveis, que se traduzem numa estética próxima do televisivo, e mesmo do kitsch. Se estivesse no Brasil, seria rapidamente convertido numa minissérie em cinco capítulos.
Caso não esteja claro após duas horas de calvário, os letreiros nos lembram que a vida de pessoas trans é muito difícil na Polônia. Ora, Aniela não ganha uma atriz trans para interpretá-la, não recebe a oportunidade de mostrar sua força ou potência (ela basicamente reage às agressões alheias), e se torna coadjuvante do próprio cartaz oficial, aparecendo atrás de Joanna Kulig, atriz de prestígio internacional.
Em conclusão, há evidentes problemas de representatividade, posicionamento político, estético e de ponto de vista. Não basta, em pleno 2023, chegar aos cinemas com uma aparência tímida, desculpando-se de antemão, com a mensagem de que “só deu para fazer assim”. Nada é mais triste do que um filme envergonhado de suas incapacidades, e que aceita se concretizar pela metade.
Mulher de… soa como uma experiência antiquada, tal qual as obras que Hollywood fazia nos anos 1970 a 1990, massacrando seus personagens LGBTQIA+ em nome de uma purificação moral da plateia majoritariamente hétero e cis. Este público pode se sentir bem ao se apiedar por uma mártir torturada, ainda que o convite à empatia não ultrapasse o limite dos sentimentos (ou seja, não chega à reflexão, nem à política). Filadélfia, Meninos Não Choram, Albert Nobbs e Transamérica não teriam mais lugar na produção cinematográfica atual. Esta experiência polonesa-sueca certamente não ajuda a abrir caminho ao empoderamento e visibilidade dos sujeitos que pretende representar.