Foram os Sussurros que me Mataram (2024)

O cinismo é um humanismo?

título original (ano)
Foram os Sussurros que me Mataram (2024)
país
Brasil
gênero
Drama
duração
75 minutos
direção
Arthur Tuoto
elenco
Mel Lisboa, Otavio Linhares, Carla Rodrigues, Pedro Gaeta, Patrick Sampaio, Isabela Lago
visto em
27ª Mostra de Tiradentes (2024)

Foram os Sussurros que me Mataram é um filme artificial. Este não é um equívoco dos criadores, nem uma característica depreciativa, e sim uma escolha deliberadamente calculada. Os personagens não agem nem falam de maneira naturalista. Os cenários possuem a aparência de uma construção em estúdio, ao invés de um quarto de hotel verossímil. As ações são improváveis; o desenrolar soa duvidoso. 

O diretor e roteirista Arthur Tuoto imagina um mundo distópico onde se multiplicam as agressões, os tiros e os cadáveres, embora não esteja disposto a filmá-lo, nem a traduzi-lo em imagens. Sentada em sua cama, a atriz Ingrid Savoy e sua agente discutem a respeito do eletrizante mundo lá fora. Há pessoas brigando na esquina. Ruas foram interditadas. Dizem que um sujeito no quarto ao lado morreu. Especula-se que o edifício possa ser invadido a qualquer instante. Comenta-se que ela seja uma das favoritas para vencer o reality show de que vai participar.

Comenta-se, justamente. As interações dependem excessivamente das falas para avançar. A câmera jamais abandona o hotel-cenário, pois Ingrid permanece nestes poucos metros quadrados. A heroína, a agente, o produtor do programa e um influenciador chegam até ela, provocam-na, informam tudo de que ela (e o espectador) precisa saber, e então saem de cena. Nenhum deles interage de fato com os objetos, com os móveis, com os cômodos deste espaço. O quarto poderia ser uma sala; o banheiro poderia ser trocado por um camarim, sem qualquer alteração significativa na dinâmica narrativa.

Ao invés de representar a desumanização, Foram os Sussurros que me Mataram a discute. Oferece uma palestra pronta, no lugar de propor um debate ao espectador.

Isso porque o longa-metragem aposta no mundo especulativo da representação pela ausência. Os crimes e perseguições podem nunca ter acontecido de fato: precisamos acreditar na declaração de personagens nada confiáveis a respeito da situação externa. Podem estar mentindo, fabulando, delirando, exagerando. A certa altura, uma amostra grátis do suposto apocalipse invade o quarto. Mesmo assim, não testemunhamos os atos enquanto ocorrem, nem descobrimos os autores de tal depredação. Talvez sejam zumbis, fantasmas, ladrões. Talvez sejam imaginados por uma personagem profundamente narcisista. Faria alguma diferença?

Ingrid (Mel Lisboa) constitui uma figura difícil de abraçar. Ela é construída com a finalidade de refletir a desumanização em tempos de redes sociais, do culto às celebridades e da radicalização da extrema-direita no Brasil. Esta artista não se importa com as pessoas ao redor. Despreza o número de mortos, pensando apenas no valor negociado em contrato, na possibilidade de tirar proveito de tamanha visibilidade. Comemora o escândalo às vésperas da estreia do programa.

Ela não apenas adota atitudes questionáveis, mas também se comporta de acordo com certo imaginário coletivo de um indivíduo asqueroso. Seu olhar carrega arrogância, as falas transbordam desdém, a postura corporal ereta denota uma pose de superioridade. Ingrid é profundamente cínica. Sara, também. Nero, também. O produtor de conteúdo e o fotógrafo, também. Trata-se de um mosaico de adultos endurecidos, individualistas, amorais. Limitam-se a calcular os ganhos pessoais após cada relato catastrófico das ruas da cidade.

Estas figuras desprezíveis se comunicam em falas extraídas de filósofos e pensadores, a exemplo de Oscar Wilde, Don DeLillo e J. G. Ballard. A comunicação entre eles soa incompatível com o registro oral por não ter sido concebida, precisamente, para o registro oral. “Eles sabem o que significa ser a fonte de pequenas obsessões fossilizadas com o tempo?”. “Os circuitos do capital estão intrinsecamente ligados aos circuitos da sociabilidade”. “Os erros ou excessos na administração do mundo das imagens produzem consequências políticas imediatas”. “Essa paisagem espera pacientemente por um pesadelo que a desperte para um mundo mais apaixonante”.

Os exemplos poderiam continuar, às dúzias. Os personagens não falam, eles declamam. Cada palavra possui a mesma importância, sendo profetizada com a solenidade de quem se dirige a uma multidão, exibindo clareza irrevogável, ritmo monocórdio, e sílabas ex-ces-si-va-men-te ar-ti-cu-la-das. Ingrid indaga a respeito da comida do hotel. Sara lhe responde sobre a programação do show. Ingrid continua criticando a carne seca do local. Sara torna a debater questões de logística. 

A robotização voluntária desta dinâmica possui o intuito provável de denunciar a perversidade do sistema capaz de produzir tais pessoas. Por isso, os estranhos diálogos empolados transmitem tudo aquilo que o diretor gostaria de transmitir. Ele decide verbalizar, embate após embate, suas reflexões filosóficas levadas à boca de personagens — qualquer um deles, posto que ilustram o mesmo movimento, unívoco, de perda de valores e capitalização da tragédia. 

Assim, ao invés de representar a desumanização, Foram os Sussurros que me Mataram a discute. Oferece uma palestra pronta, no lugar de propor um debate ao espectador. Os personagens não se contradizem, nem apresentam diferentes correntes de pensamento: repetem-se. Cabe ao espectador sentar passivamente diante do banquete verborrágico, e um tanto conformista em relação à fatalidade que pretende denunciar.

“Você já percebeu que quanto maior é o avanço da ciência, mais primitivo é o medo das pessoas? Um medo inerente a ideologias que não estão em voga, que contradizem um pretenso progresso nacional”. Teria sido mais frutífero testemunhar a reação de Ingrid diante dos cadáveres, vê-la negociar novos contratos, interagir com os fotógrafos invasivos lá fora. Entretanto, preso às restrições autoimpostas de tempo real e espaço único, o cineasta lhe permite apenas reproduzir, ao longo do texto extenso, este desprezo geral pela humanidade.  

Ignoramos a história da atriz, suas relações amorosas, familiares, o eventual talento em filmes. Isso não importa. Ela será apenas uma pessoa cínica, com desenvolvimento nulo da primeira à última cena. Nenhum outro personagem se desenvolve, posto que constituem tipos, ou arquétipos munidos de uma função precisa em cada sequência. Os atores possuem a tarefa delicada de defender estes tipos antiexemplares, carregando citações literárias a respeito do estado deplorável das coisas, enquanto somente se levantam da cama para se sentarem no móvel seguinte.

Imageticamente, a obra tem pouco a oferecer. A impressão de elegância extraída do enquadramento em scope e dos reflexos num espelho redondo escondem o fato de que a imagem se torna secundária em relação ao som. Este, sim, esforça-se em falas, ruídos e composições musicais, para sustentar alguma crença nas acusações de um apocalipse contemporâneo. As luzes alternam entre o vermelho e o azul, entretanto, não disfarçam a aparência teatral, de corpos transitando a esmo pelo palco, projetando a fala como se buscassem a compreensão daquele espectador sentado ali, no fundo do teatro.

A montagem ainda busca ocultar a impressão constante de que a narrativa foi esticada até a duração mínima para que o projeto seja considerado, oficialmente, como um longa-metragem. No final, nota-se muita pesquisa literária, muita vontade de discurso e muitas notas de rodapé, para pouca materialização cinematográfica de tamanha leitura. 

O resultado corre o risco de constatar o óbvio, relembrando uma evidente crise do sujeito contemporâneo. Concordamos, sem dúvida, com tais afirmações que devem compor o senso comum dentro de um setor minimamente progressista — o único disposto a assistir a um filme brasileiro, em especial, a um filme de linguagem mais rarefeita como este. E então? O que teria a nos dizer, para além da deploração burguês-chique de uma diva ensimesmada? O cinismo de Ingrid, Sara, Nero e todos outros termina por contaminar o próprio filme. 

Foram os Sussurros que me Mataram (2024)
4
Nota 4/10

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