Mulher de… (2023)

O inferno das boas intenções

título original (ano)
Kobieta z…
país
Polônia, Suécia
gênero
Drama
duração
132 minutos
direção
Malgorzata Szumowska, Michal Englert
elenco
Małgorzata Hajewska, Joanna Kulig, Mateusz Więcławek, Bogumiła Bajor
visto em
Mostra de São Paulo 2023

As intenções de Malgorzata Szumowska e Michal Englert são claras neste projeto. A dupla deseja denunciar a LGBTQfobia na Polônia, país que dificulta ao máximo o reconhecimento médico e institucional de pessoas trans. Por isso, elege uma protagonista trans, descobrindo desde a mais tenra infância a sua identidade de gênero, que lhe traz angústia e dúvidas durante décadas. Apenas aos 45 anos ela tem a coragem de viver plenamente a sexualidade e aparência que lhe condizem.

Embora trabalhem com um roteiro original, de sua própria autoria, os criadores despertam a impressão curiosa de partirem de uma adaptação literária. Afinal, percebe-se esta vontade abrangente de acompanhar uma vida do nascimento ao túmulo, narrando uma dezena de encontros amorosos, problemas familiares, mudanças de profissão e cidade. A cada conflito resolvido, pula-se ao dilema seguinte, de maneira sequencial, como se não houvesse um objetivo neste recorte preciso — conta-se o máximo que couber na narrativa. Os diretores aparentam não querer deixar de fora nenhum capítulo ou diálogo do extenso romance de origem — exceto pelo fato de não haver livro nenhum no qual se basear.

Na cena inicial, revelam a pequena Aniela Wesoły, ainda em sua identidade masculina, roubando a grinalda da noiva durante um casamento e fugindo com o item precioso. Este será o item escolhido para definir a heroína, desde o primeiro momento: a inadequação de gênero. Em seguida, pintará as unhas do pé, deixará o cabelo crescer. Reprimindo a percepção do gênero feminino, casa-se com uma mulher gentil, com quem faz sexo intenso diversas vezes — mais uma vez, estima-se necessário resumir à personagem ao potencial e às configurações do corpo.

Há evidentes problemas de representatividade, posicionamento político, estético e de ponto de vista. Mulher de… soa como uma experiência antiquada, tal qual as obras que Hollywood fazia nos anos 1970 a 1990.

O roteiro insiste, ano após ano, na autodescoberta progressiva. As datas desfilam na tela, como se fizesse alguma diferença à trama, e ao espectador, que tal incidente se passe em 2006 ou 2008. Chegamos às vestimentas femininas, à repressão por líderes religiosos, à rejeição de familiares, ao desgaste do relacionamento com a esposa. A montagem se encaminha ao desenvolvimento de-lagarta-a-borboleta, estimando oferecer alguma surpresa ao espectador. Posto que anuncia a questão da sexualidade através de dezenas de metáforas (o namorado entrega de presente à pretendente o pênis de uma estátua), basta somente aguardar a concretização prometida da aceitação da heroína.

Entretanto, diversos problemas atrapalham este percurso benevolente e piedoso. Em primeiro lugar, a insistência no sofrimento da protagonista. Para que o espectador torça por ela e se afeiçoe à mulher trans, estima ser necessário reduzi-la ao calvário de sua identidade de gênero. Conforme mergulha no processo de transformação de Aniela, o longa-metragem dispensa trocas de afeto, ambições profissionais, posicionamentos acerca da política, da religião, da vida em comunidade. A mulher se limita ao único conflito opressor, que parece persegui-la do início ao fim.

Em segundo lugar, o discurso se dirige essencialmente a pessoas heterossexuais, a quem se solicita tolerância e aceitação. Os motivos são menos humanistas (“Aniela é uma de nós”), do que paternalistas e condescendentes (“Tenha pena, pega leve, porque ela já tem uma vida horrível”). Para isso, é preciso sublinhar todas as passagens ruins (o sexo abusivo, a demissão por motivos transfóbicos, o assédio moral do sistema jurídico), e atenuar, ou nem mesmo citar, as passagens positivas. Como se sente Aniela quando enfim descobre o prazer sexual enquanto mulher? Quando enxerga a transformação de sua aparência? 

Em terceiro lugar, Szumowska e Englert tendem a uma espetacularização perigosa do corpo trans, que parece se equivaler à subjetividade da protagonista. Sutil a princípio, o roteiro se torna obcecado com a possibilidade de uma redesignação de gênero, até chegar ao temido, e explorador, plano próximo do pênis durante a cena de banho. Não bastasse a nudez, a montagem ainda aproxima a imagem para sublinhar a genitália masculina. A presença ou ausência do pênis adquire importância muito maior do que a alteração de nome nos registros, ou a convivência com outras mulheres numa penitenciária. O corpo trans se converte em fetiche da direção.

Além disso, os autores escalam para o papel central uma atriz cisgênero. Eles explicaram em entrevistas que não havia nenhuma atriz transexual na faixa de 40-50 anos na Polônia, capaz de interpretar o papel. Ora, o que dizer das infinitas possibilidades de trabalhar com atrizes não-profissionais? A escolha de uma dezena de pessoas trans em papéis coadjuvantes apenas reforça a compreensão de que havia, sim, indivíduos passíveis de escalação, porém a identidade de gênero não pareceu mais importante aos cineastas do que a experiência profissional… em um filme sobre a identidade de gênero.

Para coroar a experiência amarga, Mulher de… carrega uma estética de blockbuster e biopic, incorporando inúmeros planos multicoloridos, angulados, repletos de flares e cenas em contraluz. Valorizam-se os instantes na multidão, a riqueza e beleza dos cenários (o dito “valor de produção”), a caracterização de época evoluindo ao longo de quatro décadas. Para um tema tão marginal, o projeto contou com recursos bastante confortáveis, que se traduzem numa estética próxima do televisivo, e mesmo do kitsch. Se estivesse no Brasil, seria rapidamente convertido numa minissérie em cinco capítulos.

Caso não esteja claro após duas horas de calvário, os letreiros nos lembram que a vida de pessoas trans é muito difícil na Polônia. Ora, Aniela não ganha uma atriz trans para interpretá-la, não recebe a oportunidade de mostrar sua força ou potência (ela basicamente reage às agressões alheias), e se torna coadjuvante do próprio cartaz oficial, aparecendo atrás de Joanna Kulig, atriz de prestígio internacional. 

Em conclusão, há evidentes problemas de representatividade, posicionamento político, estético e de ponto de vista. Não basta, em pleno 2023, chegar aos cinemas com uma aparência tímida, desculpando-se de antemão, com a mensagem de que “só deu para fazer assim”. Nada é mais triste do que um filme envergonhado de suas incapacidades, e que aceita se concretizar pela metade. 

Mulher de… soa como uma experiência antiquada, tal qual as obras que Hollywood fazia nos anos 1970 a 1990, massacrando seus personagens LGBTQIA+ em nome de uma purificação moral da plateia majoritariamente hétero e cis. Este público pode se sentir bem ao se apiedar por uma mártir torturada, ainda que o convite à empatia não ultrapasse o limite dos sentimentos (ou seja, não chega à reflexão, nem à política). Filadélfia, Meninos Não Choram, Albert Nobbs e Transamérica não teriam mais lugar na produção cinematográfica atual. Esta experiência polonesa-sueca certamente não ajuda a abrir caminho ao empoderamento e visibilidade dos sujeitos que pretende representar.

Mulher de… (2023)
3
Nota 3/10

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