É interessante que Laure Calamy tenha se tornado, no cinema francês, a representação perfeita da mulher comum. Em Minhas Férias com Patrick (2020), Contratempos (2021) e Uma Mulher do Mundo (2021), ela encarna justamente a classe média, trabalhadora, de baixa renda, porém, livre de transtornos financeiros significativos. Uma pessoa nem bela, nem feia; nem particularmente talentosa, nem desprovida de talentos; nem vítima, nem heróica. Mesmo em cenários de fantasia ou realismo mágico (A Origem do Mal, 2022), ela ainda constitui a personagem média, ordinária, cercada por figuras excêntricas.
A grande atriz persiste nestes papéis em Pedaço de Mim. Desta vez, interpreta Mona, uma depiladora vivendo no norte na França. Habita um pequeno apartamento, e dedica todos os seus esforços aos cuidados do filho “especial” (termo que ela mesma detesta). O rapaz, já um jovem adulto, possui certo grau de autonomia, embora ainda precise de supervisão constante. O título original, Meu Inseparável (Mon Inséparable), diz respeito à proximidade entre ambos, e à necessidade desta mulher em encontrar algum respiro em meio às obrigações perpétuas junto a Joël (Charles Peccia). Já os distribuidores brasileiros preferiram, curiosamente, batizar a obra com a canção de Chico Buarque sobre o luto.
Pedaço de Mim foge à idealização da maternidade enquanto efetua uma homenagem muito sensível aos laços entre mãe e filho.
Talvez a maior parte dos dramas franceses, calcados na tradição do realismo social, convertessem Mona numa sofredora exemplar. Câmera na mão seguindo a personagem à la Dardenne, problemas com o filho na escola somados à desilusão amorosa; demissão do emprego somada ao despejo do apartamento. Dezenas de filmes acreditam honrar as classes populares ao exporem seus representantes a uma sucessão interminável de entraves (o recente A História de Souleymane segue esta cartilha à risca). Felizmente, a diretora e roteirista Anne-Sophie Bailly escapa a estas armadilhas.
O roteiro evita todas as ameaças: apesar de cansada, Mona tem tempo para dedicar ao filho e promover uma escapada com ele; mesmo na ausência de companheiros fixos, ainda mantém um romance esporádico e enriquecedor com Frank (Geert Van Rampelberg). O distanciamento do salão de beleza não representa um possível desemprego, e nenhuma conta atrasada se encontra sobre a mesa do jantar. Podemos supor dificuldades não-abordadas pelo discurso. Entretanto, a autora prefere um conflito pontual e alheio a Mona: seu filho se apaixona por Océane (Julie Froger), garota também com deficiência. Ela engravida, e os dois pretendem manter o bebê. Mas teriam capacidade de criar uma criança juntos?
A decisão de situar o dilema externamente à personagem permite ao longa-metragem explorar as contradições da liberdade que ela tanto deseja. Mona experimenta, de maneira deliberada ou imprevista, algumas horas de afastamento do filho. Ela se queixa da supervisão perene, mas também se sente abandonada face à possibilidade de o jovem passar a viver com a namorada. Para a mulher que sempre se dedicou ao outro, o que restaria de seus dias, uma vez retirado o objeto de sua dedicação? Quem vai cuidar dos cuidadores? Parte dela deseja respirar, longe do filho, mas parte se sente incompleta sem ele. Esta complexidade é muito bem explorada pela cineasta, longe de qualquer julgamento de moral.
“Eu queria um filho normal! Um filho normal!”. Exausta, ela grita no meio da rua, ciente de estar proferindo palavras “erradas”, indizíveis. Mas poderia ser condenada por desejar, afinal, se afastar das dificuldades decorrentes da deficiência de Joël? Bailly se mostra muito hábil na exploração destes instantes em que abraça as falhas e imperfeições de Mona. Podemos falar, portanto, em um filme de acolhimento e compreensão. Por isso mesmo, é importante à mulher colocar Frank em seu devido lugar quando ele ousa dizer à companheira como deveria agir em relação ao filho. Somente ela sabe, e qualquer intromissão do gênero constitui uma violência por parte de quem desconhece sua experiência de décadas ao lado do jovem.
Curiosamente, Pedaço de Mim extrai seus melhores momentos das cenas em que diz menos. Nas imagens silenciosas, quando opta pela retenção de sentimentos, Calamy pode expressar mais ambiguidades. A ligação telefônica, na qual finge conversar banalidades enquanto está transtornada de fato, resulta numa cena comovente. O café da manhã com Joël, dialogando em meios-termos a respeito da gravidez de Océane, também proporciona outro belo momento de cinema. Os melhores conflitos são aqueles evidentes, embora difíceis de verbalizar e confrontar.
Em contrapartida, instantes aparentemente concebidos para produzirem grande impacto emocional se mostram menos potentes. Duas cenas de catarse, nas quais Mona grita em lugares públicos, fazem uso apenas mediano da linguagem cinematográfica, incluindo os espaços e o som ao redor. Nestas sequências, Bailly demonstra certa indecisão entre explorar o constrangimento da escuta de terceiros, ou fingir que estes indivíduos simplesmente não existem, para se posicionar junto à dor da mãe (que não presta atenção à presença alheia). Enquanto isso, alguns recursos narrativos reiterados (o laudo policial à mostra na bolsa aberta, as cartas para fora da caixa de correio) soam convencionais e artificiais demais para um drama tão naturalista.
Ora, estas são questões pequenas perto das qualidades consideráveis deste longa-metragem. Bailly sabe exatamente como se posicionar junto à personagem central, sem acompanhar cada respiro ou passo com a câmera colada na nuca, nem torná-la refém de temas grandiosos que a cineasta pretende discutir. Este não é um filme sobre a deficiência, sobre a sexualidade de mulheres na meia-idade, ou sobre a falta de apoio às mães solo, embora obviamente atravesse estas questões, além de mais algumas. Deste modo, consegue efetuar um retrato multifacetado da mulher imperfeita, certamente carinhosa, apesar de exaurida e irritada. Pedaço de Mim foge à idealização da maternidade enquanto efetua uma homenagem muito sensível aos laços entre mãe e filho. Nada mau para um primeiro longa-metragem.