Represa (2023)

A cidade dos fantasmas

título original (ano)
Represa (2023)
país
Brasil
gênero
Drama
Duração
77 minutos
Direção
Diego Hoefel
elenco
Renato Linhares, Gilmar Magalhães, Jenniffer Joingley, David Santos
visto em
Festival de Vitória 2023

Por um lado, os motivos que levam Lucas ao sertão cearense são clássicos, tanto no cinema narrativo quanto no imaginário dos deslocamentos brasileiros. O rapaz recebe uma herança da mãe morta recentemente e, ao chegar no terreno árido, confronta-se ao irmão cuja existência ignorava até pouco tempo antes. O road movie motivado pelo luto, o reencontro com irmãos e irmãs perdidos têm motivado projetos que vão de Rio Doce a Cangaço Novo

Além disso, a necessidade de conseguir a assinatura do território para retornar o quanto antes ao Rio Grande do Sul, onde vive, remete a diversas tramas que exploram as fissuras brasileiras pelas vias da especulação imobiliária — a exemplo de Aquarius, Paterno, Piedade, La Situación, etc. É claro que, pelo caminho, o herói descobre o afeto pelo lugar que lhe parecia estranho, e cogita uma mudança de vida, da cidade embrutecida rumo ao interior profundo, onde os laços humanos são esparsos, porém verdadeiros. 

Por outro lado, a jornada deste homem soa lacônica até demais. O roteiro demora bastante para revelar as motivações elencadas acima. A explicação quanto à busca pelo terreno surge no segundo terço da trama, e as relações com o irmão, apenas na metade da narrativa — algo surpreendente para um projeto enxuto, com 77 minutos de duração. Antes disso, multiplicam-se cenas do sujeito silencioso dirigindo pela estrada, deitado na cama, contemplando o vazio. O diretor Diego Hoefel prefere inserir a narrativa num percurso intimista, de autodescoberta, ao invés de multiplicar fatos e dados a respeito do local por onde transita.

Para um cenário focado na materialidade de casas em ruínas, terrenos mensurados, muros a pular e portões a abrir, imperam personagens fantasmáticos, que desaparecem e voltam quando desejam, sem deixar traços.

Deste modo, a direção ostenta a confiança de repetir cenas e reduzir conflitos ao mínimo necessário. Há uma dúzia de planos de Lucas (Renato Linhares) de lado, dirigindo, em enquadramento idêntico, além de mais uma dúzia de diálogos nos quais ele pergunta por Josy, a garota desaparecida. O ator empresta ao protagonista um misto de cansaço e melancolia estampados no rosto a todo momento, reforçando a escolha do projeto pela linearidade (a monotonia enquanto tema) em detrimento de qualquer forma de reviravolta digna deste nome.

Em paralelo, o texto depende em excesso dos coadjuvantes para fazer a trama avançar. É preciso que a garota desapareça; que o recepcionista da pousada (o excelente David Santos, destaque de Quando Eu me Encontrar) tome iniciativa para um encontro amoroso; que o correspondente no sul envie profissionais para medir o terreno. Isso porque Lucas constitui um sujeito opaco, marcado por raras vontades e desejos. Ele reage aos movimentos alheios, embora tome poucas iniciativas por conta própria.

O drama nunca fornece explicações a respeito do passado deste homem, nem dos planos para o futuro próximo. Ignoramos detalhes de seu trabalho no sul, ou de relacionamentos afetivos por lá. Desconhecemos o posicionamento político e o nível de proximidade com a mãe recém-falecida, de quem aparenta não guardar nem um objeto ou ícone palpável consigo. Não sabemos se ele precisaria voltar logo à terra de origem, ou se pode, de fato, estender a permanência no Ceará o quanto desejar. Nada prende este homem-núcleo em torno do qual tudo orbita, embora ele mesmo constitua um centro de atração etéreo e blasé

Felizmente, Hoefel constrói um discreto humor tragicômico, capaz de retirar a obra de uma aura de autoimportância. As cenas do rapaz pulando o muro, as conversas desencontradas com Will e a garrafa térmica emperrada demonstram a bem-vinda abertura aos percalços cotidianos, típica de um cronista. Um personagem conversa enquanto conserta a lâmpada do teto; um segundo interrompe o jogo de bilhar para iniciar uma conversa. O utilitarismo tão incômodo em diversos filmes brasileiros (o personagem que entra em cena apenas para dizer ou executar uma tarefa específica) está distante deste panorama. Aqui, as ações respiram.

Além disso, o pequeno núcleo de atores coadjuvantes apresenta ótimo desempenho, o que inclui a naturalidade de Jenniffer Joingley e o evidente conhecimento da região por parte de Gilmar Magalhães. O projeto se impregna de um naturalismo seguro em locações e figurinos, do tipo que evita chamar atenção a si próprio, e contribui à impressão de um controle maduro da direção. Até a direção de fotografia, podendo romantizar ou escancarar a secura das paisagens, revela uma Jaguaribara discreta, diminuta. Nenhum aspecto da produção aspira à grandiloquência.

É curioso, em 2023, se deparar com três longas-metragens cearenses que resgatam de maneira direta a tragédia da cidade submersa. Segundo a prefeitura de 25 anos atrás, a construção da barragem exigia a passagem das águas pela geografia do Jaguaribara, o que garantiria um avanço econômico imprescindível. Anos depois, o desenvolvimento prometido nunca ocorreu, enquanto se destruiu a memória e a história de inúmeras gerações. Memórias da Chuva, de Wolney de Oliveira, e Mais Pesado É o Céu, de Petrus Cariry, aproximam-se destes fatos.

Apesar de seguirem linguagens e estilos diferentes, os três cineastas demonstram um olhar de ternura e melancolia à cidade submersa, que volta a aparecer quando o nível da barragem desce. Hoefel privilegia esta masculinidade desencarnada, uma espécie de corporeidade desinteressada. Para um cenário focado na materialidade de casas em ruínas, terrenos mensurados, muros a pular e portões a abrir, imperam personagens fantasmáticos, que desaparecem e voltam quando desejam, sem deixar traços, nem serem localizados com facilidade.

Fica a impressão que a nova Jaguaribara abrigaria os ecos e sonhos da cidade que não existe mais. Até por isso, Lucas, este sujeito de lugar nenhum, desprovido de amarras, amores e interesses financeiros, se sente tão à vontade no terreno vazio, de casas dispersas e poucas pessoas com quem conversar. Ali, ele dá uma volta na bicicleta furtada, tem uma noite de carinho, sai com amigos alheios. O filme proporciona ao rapaz de humor módico a possibilidade de espelhar a sua solidão na solidão dos outros.

Represa (2023)
6
Nota 6/10

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