Marie Kriegel (Laure Calamy) é descrita desde a cena inicial por sua profissão. A prostituta recebe um cliente em casa, explica o preço de cada serviço prestado, fecha as janelas e tira a roupa para começar o serviço. É fundamental à diretora Cécile Ducrocq que esta mulher seja vista pelo prisma mais naturalista possível, ao invés de apostar numa revelação temerosa ou sensacionalista. Esta mulher desempenha um ofício como qualquer outro. Ao final do dia, faz as contas de casa e calcula os gastos necessários para manter o apartamento.
Uma Mulher do Mundo se esforça em demonstrar a prostituição por um viés honroso, porém distante de idealizações. Há inúmeras cenas da personagem recebendo homens, esperando na calçada, dialogando com outras prostitutas. Quando vai ao banco pedir um empréstimo, percebe o incômodo do atendente ao escutar seu ramo de atividade; quando inscreve o filho numa prestigiosa escola de culinária, escuta o menino descrevê-la como “cabeleireira a domicílio”. O drama parte do retrato social, entre o orgulho demonstrado pela heroína, e a vergonha, ou criminalização, da comunidade ao redor.
Seguindo as regras do realismo social, tão frequente no cinema francês, o ponto de vista se cola a Marie, que domina a totalidade das cenas. A câmera segue seu rosto, seu corpo, movimentando-se conforme ela anda da casa para a rua, do banco para o dormitório estudantil do filho. Enxergamos o mundo pelos olhos desta personagem, o que facilita nossa identificação com ela e atenua a possibilidade de um julgamento moral externo. Compreendemos os motivos pelos quais ela se demonstra ríspida ou agressiva, em reação às inúmeras agressões que sofreu, e ainda sofre.
Para não percebê-la enquanto sofredora ou vitimizada, o discurso prefere caracterizar a trabalhadora do sexo como uma mártir, ou ainda uma versão da mater dolorosa.
Para atribuir dinamismo à jornada, a diretora coloca sua personagem em constante movimento. A prostituta raramente lamenta seus problemas financeiros, ou a má conduta do filho irresponsável. Pelo contrário, ela parte imediatamente em busca de alternativas, seja no banco, na casa de amigos, junto às colegas prostitutas, etc. Este seria um “filme de ação” no sentido estrito do termo: todos os sentimentos são externalizados via choro, grito, risos (vide a cena final). Marie transmite as sensações pelo corpo — algo pertinente à sua profissão — de maneira pouco dúbia ou subentendida. Pelo contrário, ele tem as emoções à flor da pele, sendo bastante reativa e combativa.
Em outras palavras, para não percebê-la enquanto sofredora ou vitimizada, o discurso prefere caracterizar a trabalhadora do sexo como uma mártir, ou ainda uma versão da mater dolorosa. Trata-se da figura da mãe disposta a tudo para providenciar o melhor para o seu filho. Ela se dispõe a um trabalho degradante num cabaré explorador no intuito de reunir o dinheiro para a escola do garoto, que jamais pede por nenhum desses favores. As mães sacrificiais costumam ser identificadas pelo ápice da virtude e da pureza, pelo altruísmo e pela abnegação. A novidade, neste caso, seria a capacidade do filme de associar tal imaginário à figura de uma prostituta, que costuma ser vilanizada na sociedade.
Logo, o roteiro passa a sublinhar as qualidade sde Marie e os defeitos das pessoas com quem interage, de modo a explicitar seu esforço. O filho Adrien (Nissin Renard) representa o ápice do descaso e da grosseria com a mãe que lhe quer tão bem. O novo chefe, Bruno (Sam Louwyck), a trata com desprezo, e as primeiras colegas encontradas na boate são ferozes e competitivas. Assim, Ducrocq comprova a existência de uma sociedade dura e adversa, sobretudo a uma trabalhadora do sexo. Ela atravessa a fronteira ao país vizinho, faz trajetos longuíssimos para dormir em casa e economizar dinheiro de hospedagem, na intenção única de saciar as necessidades do menino. Ela se torna ainda mais íntegra pelo fato de prestar serviço a quem recusa suas iniciativas. É difícil se identificar com o rapaz apresentado como intragável e ingrato.
Uma Mulher do Mundo se constrói pelo princípio da gradação: a situação se torna cada vez mais dura para Marie, e Adrien se mostra cada vez menos grato. A data de pagamento da escola se aproxima, e a prostituta está longe de reunir a quantia necessária. Encaminha-se a protagonista à explosão inevitável, que virá numa catarse de grandes proporções, jogada na rua, contra o asfalto. Ela enfrenta um conflito moral considerável, quando descobre um envelope de dinheiro pertencendo a outra pessoa. No entanto, a tentação de ceder ao roubo não serve a diminuir suas qualidades, pelo contrário — o ato apenas mostra o quão longe a mulher honesta poderia ir para prover ao garoto malcriado.
Felizmente, o longa-metragem conta com uma das atrizes francesas mais talentosas da atualidade. Laure Calamy possui impressionante desenvoltura tanto na comédia quanto no drama, tendo representado com frequência este imaginário da classe operária combativa, a exemplo de A Origem do Mal (2022), Contratempos (2021), Dez por Cento (2015 – 2020) e Garoto Chiffon (2020). Aqui, ela empresta um corpo sem vaidades, além de um trabalho de voz despojado, que se adequa com perfeição aos diálogos truncados, às vezes gritados ou repetidos, típicos da linguagem popular. Os colegas de cena são competentes, embora ganhem pouca possibilidade para desenvolver uma personalidade autônoma.
No que diz respeito à mise en scène, a cineasta opta por um estilo tão funcional quanto impessoal. A câmera-personagem valoriza o trabalho da protagonista e reforça o sentimento de urgência das ações. No entanto, impede respiros, variações e, em especial, a construção de metáforas ou poesias visuais capazes de representar Marie sem precisar filmá-la executando cada ação e resolvendo os conflitos, um por um. Os significados se encontram na superfície, no sentido de se abrirem a poucas reflexões, ambiguidades ou subentendidos. Trata-se de um longa-metragem bastante direto em sua abordagem, para o bem ou para o mal.
Mesmo o retrato da prostituição poderia ser questionado. Na intenção de enaltecer a personagem central, Ducrocq oferece um painel globalmente desagradável e segregacionista de trabalhadoras do sexo. No intuito de revelar que Marie possui falhas, comuns a quaisquer pessoas, a diretora lhe entrega cenas em que revela sua transfobia, xenofobia e racismo. A construção seria válida, caso estas minorias atacadas não fossem servis demais (caso da gentil amiga travesti) ou puramente objetificadas, sem voz nem nome (caso das prostitutas africanas). O olhar da diretora se dedica tanto à protagonista que negligencia fatores fundamentais da sociedade onde ela se insere. Em outras palavras, Uma Mulher do Mundo efetua um ótimo retrato psicológico, porém um retrato sociológico insuficiente.