Garoto Chiffon (2020) se insere numa vertente específica da produção LGBTQIA+: as metaficções. É comum que realizadores gays representem suas experiências de vida no cinema, ainda refratário a histórias de amor entre homens e angústias sociais relacionadas à (homo)sexualidade. No entanto, o ator Nicolas Maury, em sua primeira experiência como diretor de longas-metragens, oferece a si próprio o papel principal de um sujeito frágil, patologicamente ciumento e carente.
Assim, a possível impressão de vaidade e egocentrismo do gesto se atenua pelo retrato autodepreciativo, de forte teor irônico, numa vertente consagrada pelas obras cômicas de Woody Allen (embora no quarto do personagem principal, o cartaz na parede faça referência a Hong Sang-soo). O artista se filma em cenas de nudez não idealizada, com o corpo exposto em luz desfavorável, próxima do patético ou ridículo. Em outras palavras, interessa à narrativa a coleção de falhas deste personagem, ao invés de suas virtudes. O filme prefere abraçar indivíduos problemáticos a resolver seus problemas ou idealizá-los.
Logo, Jérémie Meyer (Maury) é apresentado por um instante particular de crise dentro de um retrato cronicamente melancólico. O herói, descrito como ator fracassado, perde um papel importante sem grandes explicações. Ele é rejeitado pelo namorado Albert (Arnaud Valois) devido às crises de ciúme, e se sente desconfortável com uma cerimônia funerária organizada ao pai morto em sua cidade de origem. Diante de uma bifurcação nas ruas da cidade, fica indeciso quanto ao caminho a tomar, e após ser confrontado por membros de uma associação de ciumentos anônimos, parte em fuga. Jérémie é apresentado ao espectador na condição de sujeito imaturo, ainda que bem-intencionado.
Tais características levam a uma infantilização explicitada pelo título: a mãe Bernadette (Nathalie Baye) ainda o chama de “chiffon”, apelido explicado apenas em partes pelos diálogos, e referente à docilidade misturada com delicadeza do menino gay. De volta ao domicílio familiar, ele se converte num menino indefeso, feliz com um cachorro recebido de presente de aniversário, vestindo pijamas infantis e contentando-se com as ordens e cuidados maternos. O ator atribui a si próprio um papel sob medida para a voz aguda e aveludada, os maneirismos assumidamente efeminados, o olhar piedoso. Enquanto diretor, possui plena consciência de seus talentos de intérprete.
O longa-metragem acaba por refletir algumas síndromes contemporâneas relacionadas aos millennials LGBTQIA+, a exemplo da “síndrome de bom menino” e da solidão gay. O roteiro apoia-se na eterna infância de um sujeito que certamente sofreu preconceito e exclusão quando menino, e nunca conseguiu se emancipar da posição de filho querido (visto que, nos braços da mãe, encontra o amor incondicional procurado). Com receio de não ser amado — em decorrência da falta de amor-próprio —, desconfia do afeto dos próximos, buscando agradar aos demais num nível obsessivo.
O filme reflete a importante busca por uma estética gay, no sentido de transmitir […] uma visão de mundo assumidamente queer.
Maury embala esta mistura de road movie com coming of age story numa aceitação pacífica de seus afetos em relação aos outros homens. O relacionamento estabelecido com Kévin (Théo Christine), espécie de filho heterossexual que o substitui simbolicamente na casa da mãe, passa da competição à inveja, raiva e admiração, até chegar à admiração erótica (numa das mais belas cenas do filme, junto à piscina, filmada em plano subjetivo) e à camaradagem. Jérémie passa por um processo terapêutico sem perceber. Ao longo da pequena jornada de caos e reconstituição de si, confronta-se às suas principais fobias.
Na maior parte do filme, o diretor efetua uma construção clássica de planos e movimentos de câmera. A direção de fotografia centraliza os personagens no enquadramento, opera em planos e contraplanos durante a conversa, e move-se somente quando precisa acompanhar os atores em caminhadas. Enquanto isso, uma galeria de veteranos do cinema francês desfila em participações amigáveis, de função narrativa limitada, a exemplo de Isabelle Huppert, Laure Calamy, Jean-Marc Barr, Carole Frank, Laurent Capelluto e Margot Maricot. A ciranda de afetos se estende ao círculo pessoal do autor.
Aos poucos, entretanto, Garoto Chiffon se abre à magia e à poesia. Partindo da tragicomédia de costumes, o roteiro abraça cenas próximas do surrealismo (a doença do cão), do sonho (a entrada no palco para o espetáculo) e da fantasia (a conclusão musical). A câmera rígida dos instantes iniciais se acalma, torna-se mais fluida e leve, com planos que navegam por rostos e dançam com os personagens. A revelação da mãe sobre seu passado ocorre num instante em que Bernadette e o filho se tratam, pela primeira vez, como adultos em pé de igualdade. A estética emancipa ao garoto enquanto liberta a si própria.
Além disso, a obra reflete a importante busca por uma estética gay, no sentido de transmitir às cores, aos objetos, figurinos, músicas e à construção de personagens uma visão de mundo assumidamente queer. Os papéis de paredes, as estampas das roupas, os figurinos extravagantes sob o palco em contraste com os vestimentos simples em tons pastéis na casa da mãe reforçam a ideia de um estranhamento em relação ao padrão heteronormativo de moderação e polidez. O filme permite excessos numa construção kitsch e afetada, ainda que em chave melancólica. Maury esforça-se para não copiar os cânones do cinema de autor francês, nem aquele dos referenciais norte-americanos. O autor busca sua linguagem e tom próprios.
É certo que alguns instantes soam mais exagerados ou acessórios, e que a maquiagem do olho roxo sofre com problemas de continuidade — sendo a ferida que cicatriza uma metáfora importante para o protagonista. Alguns personagens coadjuvantes são mal aproveitados, dependendo excessivamente de Jérémie para justificar sua presença em cena. No entanto, trata-se de um cinema movido por riscos e ambições, confiante em suas escolhas e avesso à tentativa de agradar a um público mais amplo. Neste processo, efetua um retrato tão carinhoso quanto crítico dos jovens adultos perdidos numa pós-modernidade opressora. Por trás da aparência de um filme pequeno, esconde um gesto cinematográfico vigoroso.