Garoto Chiffon (2020)

A solidão do jovem gay

título original (ano)
Garçon Chiffon (2020)
país
França
gênero
Comédia, Drama
duração
108 minutos
direção
Nicolas Maury
elenco
Nicolas Maury, Nathalie Baye, Arnaud Valois, Laure Calamy, Jean-Marc Barr, Théo Christine, Laurent Capelluto, Carole Franck
visto em
Cinemas

Garoto Chiffon (2020) se insere numa vertente específica da produção LGBTQIA+: as metaficções. É comum que realizadores gays representem suas experiências de vida no cinema, ainda refratário a histórias de amor entre homens e angústias sociais relacionadas à (homo)sexualidade. No entanto, o ator Nicolas Maury, em sua primeira experiência como diretor de longas-metragens, oferece a si próprio o papel principal de um sujeito frágil, patologicamente ciumento e carente.

Assim, a possível impressão de vaidade e egocentrismo do gesto se atenua pelo retrato autodepreciativo, de forte teor irônico, numa vertente consagrada pelas obras cômicas de Woody Allen (embora no quarto do personagem principal, o cartaz na parede faça referência a Hong Sang-soo). O artista se filma em cenas de nudez não idealizada, com o corpo exposto em luz desfavorável, próxima do patético ou ridículo. Em outras palavras, interessa à narrativa a coleção de falhas deste personagem, ao invés de suas virtudes. O filme prefere abraçar indivíduos problemáticos a resolver seus problemas ou idealizá-los.

Logo, Jérémie Meyer (Maury) é apresentado por um instante particular de crise dentro de um retrato cronicamente melancólico. O herói, descrito como ator fracassado, perde um papel importante sem grandes explicações. Ele é rejeitado pelo namorado Albert (Arnaud Valois) devido às crises de ciúme, e se sente desconfortável com uma cerimônia funerária organizada ao pai morto em sua cidade de origem. Diante de uma bifurcação nas ruas da cidade, fica indeciso quanto ao caminho a tomar, e após ser confrontado por membros de uma associação de ciumentos anônimos, parte em fuga. Jérémie é apresentado ao espectador na condição de sujeito imaturo, ainda que bem-intencionado.

Tais características levam a uma infantilização explicitada pelo título: a mãe Bernadette (Nathalie Baye) ainda o chama de “chiffon”, apelido explicado apenas em partes pelos diálogos, e referente à docilidade misturada com delicadeza do menino gay. De volta ao domicílio familiar, ele se converte num menino indefeso, feliz com um cachorro recebido de presente de aniversário, vestindo pijamas infantis e contentando-se com as ordens e cuidados maternos. O ator atribui a si próprio um papel sob medida para a voz aguda e aveludada, os maneirismos assumidamente efeminados, o olhar piedoso. Enquanto diretor, possui plena consciência de seus talentos de intérprete.

O longa-metragem acaba por refletir algumas síndromes contemporâneas relacionadas aos millennials LGBTQIA+, a exemplo da “síndrome de bom menino” e da solidão gay. O roteiro apoia-se na eterna infância de um sujeito que certamente sofreu preconceito e exclusão quando menino, e nunca conseguiu se emancipar da posição de filho querido (visto que, nos braços da mãe, encontra o amor incondicional procurado). Com receio de não ser amado — em decorrência da falta de amor-próprio —, desconfia do afeto dos próximos, buscando agradar aos demais num nível obsessivo.

O filme reflete a importante busca por uma estética gay, no sentido de transmitir […] uma visão de mundo assumidamente queer.

Maury embala esta mistura de road movie com coming of age story numa aceitação pacífica de seus afetos em relação aos outros homens. O relacionamento estabelecido com Kévin  (Théo Christine), espécie de filho heterossexual que o substitui simbolicamente na casa da mãe, passa da competição à inveja, raiva e admiração, até chegar à admiração erótica (numa das mais belas cenas do filme, junto à piscina, filmada em plano subjetivo) e à camaradagem. Jérémie passa por um processo terapêutico sem perceber. Ao longo da pequena jornada de caos e reconstituição de si, confronta-se às suas principais fobias.

Na maior parte do filme, o diretor efetua uma construção clássica de planos e movimentos de câmera. A direção de fotografia centraliza os personagens no enquadramento, opera em planos e contraplanos durante a conversa, e move-se somente quando precisa acompanhar os atores em caminhadas. Enquanto isso, uma galeria de veteranos do cinema francês desfila em participações amigáveis, de função narrativa limitada, a exemplo de Isabelle Huppert, Laure Calamy, Jean-Marc Barr, Carole Frank, Laurent Capelluto e Margot Maricot. A ciranda de afetos se estende ao círculo pessoal do autor.

Aos poucos, entretanto, Garoto Chiffon se abre à magia e à poesia. Partindo da tragicomédia de costumes, o roteiro abraça cenas próximas do surrealismo (a doença do cão), do sonho (a entrada no palco para o espetáculo) e da fantasia (a conclusão musical). A câmera rígida dos instantes iniciais se acalma, torna-se mais fluida e leve, com planos que navegam por rostos e dançam com os personagens. A revelação da mãe sobre seu passado ocorre num instante em que Bernadette e o filho se tratam, pela primeira vez, como adultos em pé de igualdade. A estética emancipa ao garoto enquanto liberta a si própria.

Além disso, a obra reflete a importante busca por uma estética gay, no sentido de transmitir às cores, aos objetos, figurinos, músicas e à construção de personagens uma visão de mundo assumidamente queer. Os papéis de paredes, as estampas das roupas, os figurinos extravagantes sob o palco em contraste com os vestimentos simples em tons pastéis na casa da mãe reforçam a ideia de um estranhamento em relação ao padrão heteronormativo de moderação e polidez. O filme permite excessos numa construção kitsch e afetada, ainda que em chave melancólica. Maury esforça-se para não copiar os cânones do cinema de autor francês, nem aquele dos referenciais norte-americanos. O autor busca sua linguagem e tom próprios.

É certo que alguns instantes soam mais exagerados ou acessórios, e que a maquiagem do olho roxo sofre com problemas de continuidade — sendo a ferida que cicatriza uma metáfora importante para o protagonista. Alguns personagens coadjuvantes são mal aproveitados, dependendo excessivamente de Jérémie para justificar sua presença em cena. No entanto, trata-se de um cinema movido por riscos e ambições, confiante em suas escolhas e avesso à tentativa de agradar a um público mais amplo. Neste processo, efetua um retrato tão carinhoso quanto crítico dos jovens adultos perdidos numa pós-modernidade opressora. Por trás da aparência de um filme pequeno, esconde um gesto cinematográfico vigoroso.

Garoto Chiffon (2020)
8
Nota 8/10

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