Uma preocupação surge de imediato diante das situações apresentadas em Dogborn. O drama ameaça se enveredar pela dinâmica do mundo cão, a partir de dois irmãos conhecidos como os Gêmeos, em situação de extrema vulnerabilidade social. Eles não têm empregos, familiares, nem uma rede de apoio, e sequer sabem onde dormirão, ou se terão o que comer. Cada ligação da Irmã (Silvana Imam) para solicitar abrigo ou ajuda é acompanhada de uma violenta resposta negativa. O mundo parece ter fechado as portas aos dois.
A sensação se acentua diante de um trabalho asfixiante de fotografia. A dupla é seguida de perto, em todas as cenas, ocupando a integralidade das imagens. Enquanto dirigem pela cidade, caminham pelos corredores ou buscam um endereço específico, a câmera se cola aos rostos sofridos, os cabelos bagunçados, os casacos desgastados que mal os protegem do frio intenso. A imagem oscila entre os rostos próximos, a nuca durante os deslocamentos, e os movimentos laterais nas sequências de caminhadas.
Os conflitos e angústias são acentuados pela escolha da câmera-personagem, ou seja, a história que elege dois protagonistas e nunca os abandona. A Irmã precisa cuidar do Irmão (nenhum deles possui nome), um jovem adulto que não fala; além de pessoas que aparecem em seu caminho, e das demandas absurdas que partem dos pequenos patrões. Ela quer garantir que todos estejam seguros conforme se desloca entre um bico e outro. A premissa do cuidado ostensivo levanta um raciocínio irônico: quem cuidará dos cuidadores? Quem vigia a Irmã, enquanto esta visa assegurar a sobrevida dos demais?
As cores neon, o uso intenso de trilha sonora, os close-ups e a reprodução de urgência através do tempo real (a história se desenvolve em poucas horas) talvez sugiram que a cineasta Isabella Carbonell esteja se divertindo com o espetáculo da miséria. Ela poderia observar o sofrimento com letra maiúscula, apresentando prazer em vitimizar duas pessoas vulneráveis, estrangeiras e marginalizadas, para criar um discurso social. Muitos filmes se perdem no limite entre denunciar a violência do sistema e ser, por si próprio, violento em relação aos sujeitos que representa.
Dogborn evita repetir as falhas recorrentes do cinema-tortura, tantas vezes praticado por jovens cineastas homens em sua ânsia de denunciar os males do mundo a partir de uma posição de superioridade moral e social.
Felizmente, as inquietações começam a se dissipar. Irmã, Irmão e outros indivíduos explorados nesta trama jamais assumem uma posição chorosa, nem se apiedam sobre seus destinos. Eles tampouco se convertem em heróis de uma resistência quixotesca. O roteiro permite que respondam da melhor maneira a cada obstáculo isolado, errando às vezes, consertando-se em seguida, hesitando quanto ao melhor caminho a adotar. Trata-se de figuras plausíveis, isentas de idealização, e observadas com distanciamento. A autora evita solicitar ao espectador que torça por eles ou tema por seus destinos. Testemunhamos a madrugada violenta numa posição inesperadamente apartada.
Segundo, o longa-metragem foge da materialização dos temas espinhosos que discute. Dogborn retrata o tráfico de mulheres, a pedofilia, a prostituição, a exploração de estrangeiros por outros estrangeiros que precisam de dinheiro. A heroína sequer desconfiaria que a “mercadoria” a entregar em endereços precisos consiste em mulheres prostituídas, e algumas crianças a clientes seletos, para orgias. Nenhuma violência sexual é mostrada de perto, apenas sugerida via som ou símbolos de causa e consequência. É evidente que a atriz mirim foi protegida de tal contexto durante as filmagens.
O texto evita chamar os crimes pelo nome. Pelo misto de vergonha e pela evidente consciência do quão errado são estes atos, os negociadores falam em “fazer entregas”, “coletar o material”, “você sabe o que tem que fazer”, e assim por diante. A tensão se fortalece diante da tentativa de disfarçar o óbvio, ou conferir uma aparência aceitável a atitudes abomináveis. A Irmã aceita, inicialmente, fazer as entregas, pela necessidade do dinheiro, e depois traça seu próprio limite pessoal ao descobrir, na traseira da van, uma garotinha de menos de dez anos de idade.
O curto tempo de narrativa poderia sugerir uma gradação implacável. Em contrapartida, o projeto surpreende pela abertura aos silêncios e à contemplação. A escolha por um co-protagonista mudo faz com que os medos e horrores da dupla sejam transmitidos apenas no rosto dos atores, impossibilitados de travar uma conversa. Aqui, os não-ditos se tornam tão fortes quanto aquilo que se verbaliza, e as sugestões assombram mais do que as imagens reveladas. O que dizer do som de meninas apavoradas na parte de trás do veículo, enquanto os Gêmeos dirigem?
Silvana Imam e Philip Oros compõem uma boa dupla, com estilos de atuação distintos, porém complementares. Ela, rapper e atriz, oferece uma composição crua, sem qualquer vaidade, preferindo o estilo intuitivo ao técnico. A intérprete assume uma posição da personagem-corpo, de uma entrega selvagem e avessa à psicologização. Ele, por sua vez, encarrega-se da doçura num mundo de brutos, sugerindo através do olhar uma possibilidade de ternura quase infantil, ou mesmo infantilóide. A dupla se converte, simbolicamente, em mãe e filho, até ele ganhar a oportunidade de se impor de maneira autônoma.
É verdade que alguns traços soam forçados e acelerados no processo. A reunião entre a menina pequena e o Irmão careceria de mais cuidado e elaboração para soar verossímil, enquanto a ameaça efetuada a um dos clientes adquire um caráter unilateral de controle de poder — como o sujeito riquíssimo não tentaria se valer de sua posição de privilégio? Carbonell acredita em suas escolhas extremas e jamais alivia o teor das ações, correndo o risco de soar caricatural em determinados momentos. Há um grau de segurança e autoconfiança exemplares neste gesto sem concessões.
Por fim, Dogborn evita repetir as falhas recorrentes do cinema-tortura, tantas vezes praticado por jovens cineastas homens em sua ânsia de denunciar os males do mundo a partir de uma posição de superioridade moral e social. A diretora sueca posiciona-se ao lado dos protagonistas, em postura de inesperada cumplicidade e horizontalidade. Neste processo, minimiza uma compreensão política ampla (faltam religião, leis, polícia e outros agentes no jogo) em prol de um retrato específico de dois indivíduos sem nome nem pertencimento, porém seguros de seu direito de resistência aos absurdos que os cercam.