No interior de um teatro parisiense, três atores encenam uma comédia popularesca, do tipo que faz piada com homens cornos e mulheres fáceis. Há poucas pessoas na plateia, de aparência apática. Até que um espectador — o Yannick do título — se levanta, pede para interromperem o espetáculo. Reclama que a apresentação está muito ruim, e ele, que raramente frequenta o teatro, mereceria algo divertido. Então que mudem o texto, por favor, e encenem algo diferente. Afinal, ele pegou o transporte público durante uma hora até o local.
O longa-metragem curtíssimo (apenas 67 minutos) se desenvolve inteiramente a partir da premissa pouco habitual. Com aparência de tempo real, retrata as três ou quatro horas seguintes ao incidente atípico. Atores brigam com o homem desagradável, o público pede que a peça continue, embora admitam o tédio com o material encenado. Irritam-se todos, até Yannick sacar um revólver e exigir uma encenação alternativa. A comédia passa ao suspense, e a briga se converte numa situação envolvendo reféns. Entretenimento é coisa séria.
Para quem conhece as obras anteriores do diretor e roteirista Quentin Dupieux, a improbabilidade soa como um novo normal. Depois de imaginar pneus assassinos (Rubber, 2010), viagens no tempo pelos andares de um sobrado (Incroyable Mais Vrai, 2022), homens obcecados pela própria jaqueta (Deerskin: A Jaqueta de Couro de Cervo, 2019), cadáveres guardados no armário da delegacia (O Interrogatório, 2018) e outras estripulias, compreendemos que o teatro do absurdo constitua o motor criativo de predileção do autor. Suas obras se tornam cada vez mais velozes, curtas, fáceis e rápidas de produzir.
O diretor se alegra em inventar casos improváveis, mas então movimenta ao mínimo as suas peças, no piloto automático, encerrando a jornada assim que possível.
Pode-se falar em um modus operandi rígido: o cineasta dispara o princípio insano logo nas primeiras cenas, para desenvolvê-lo em seguida conforme as regras da verossimilhança. Como pessoas comuns reagiriam a um caso inexplicável? De que maneira o indivíduo ordinário, sobretudo aquele entediado com a banalidade do cotidiano, poderia explodir face ao deprimente estado das coisas? Filme após filmes, sustenta-se a tese de que o verdadeiro absurdo se encontra na apatia de nossas vidas de classe média. Por isso, a vontade de semear o caos, e descobrir como as formigas se movem quando incendiamos o formigueiro.
Os atores se divertem. Blanche Gardin, oriunda precisamente da comédia teatral e famosa no humor de Internet, tem se tornado um trunfo para diretores propensos ao humor delirante — vide as colaborações com Benoît Delépine e Gustave Kervern. Pio Marmaï se permite ir além dos limites da polidez que costuma apresentar em personagens dramáticos, e mesmo nos cômicos. O texto constitui uma oportunidade rara para os atores se ridicularizarem, testando os limites próprios e o tom das composições convencionais. O conjunto remete a um grande jogo de cena.
No papel de Yannick, Raphaël Quenard combina o olhar meio delirante com acessos de sanidade; ou a agressividade ao empunhar a arma com a gentileza quando se dirige à plateia, para colocá-la do seu lado. Entretanto, a imagem do sujeito pobre, expressando-se em forte sotaque suburbano, num francês repleto de erros, beira a ridicularização dos miseráveis que a comédia brasileira conhece tão bem. Quando as piadas miram o princípio cênico, o resultado se fortalece. Quando visam a ignorância do sequestrador, ou sua profissão de vigia noturno, o teor se torna amargo.
A indefinição de alvos e propósitos atravessa Yannick na totalidade. As alternâncias de poder entre os atores e o espectador, ou entre os colegas na plateia e a funcionária do guarda-volumes, trazem alguma textura à narrativa simplíssima. No entanto, as sugestões de que o humor rasteiro do anti-herói entretenha os demais com maior intensidade do que aquele de “profissionais”, e de que devamos rir da dificuldade do homem em ligar o computador ou digitar no teclado, remetem ao deboche do sujeito por sua simples origem desprivilegiada.
Haveria inúmeras maneiras de explorar a fundo a bela premissa. O espaço da coxia, os sons ecoados no corredor, as manifestações distintas dos demais espectadores, as discordâncias entre a trinca de atores poderiam gerar relevo e tensão. Isso expandiria o conceito, aprofundaria o teor absurdo ao seu limite, e brincaria com a metalinguagem vertiginosa da proposta. No entanto, Dupieux se contenta com um cardápio simples, rápido, e alegremente superficial.
Este tem se tornado um traço recorrente nas últimas obras do autor: o interesse superior pela ideia do que pelo desenvolvimento da mesma. O diretor se alegra em inventar casos improváveis (“E se um espectador se levantasse…?”), mas então movimenta ao mínimo as suas peças, no piloto automático, encerrando a jornada assim que possível. Neste caso, o roteiro suspende a interação de maneira abrupta, evitando tomar qualquer decisão definitiva a respeito da noite catártica. O espectador que imagine suas reviravoltas a partir daquele ponto.
Yannick aparenta ter sido filmado a partir dos primeiros tratamentos do texto, em modo sintético, explorando uma parcela restrita da capacidade de seus atores. O próprio espelhamento entre palco e plateia, a partir do momento em que o público passa a criar, para o olhar atônito dos artistas, permanece no estágio da sugestão. Terminada esta esquete alongada, desconhecemos a subjetividade dos atores e as diferenças de temperamento, opinião ou objetivos entre os ocupantes da sala.
Em paralelo, a nova peça escrita pelo espectador descontente nunca reflete o texto de “O Chifrudo”, encenado a princípio. A ameaça inicial jamais adquire tons mais graves, nem explora o espaço, a duração, as diferenças de ângulos, de profundidades, de olhares, de pontos de vista. O resultado produz uma satisfação módica, e análoga à reação despertada entre a peça humorística e os espectadores na sala. Dupieux segue na cruzada por demolir lugares-comuns e códigos de conduta, embora não tenha decidido o que pretende construir por cima dos escombros.