Fábio Leal e Gustavo Vinagre têm se consolidado como dois nomes fundamentais no audiovisual brasileiro por suas pesquisas cinematográficas a respeito de gênero, sexualidade e representatividade LGBTQIA+. O primeiro dirigiu os premiados O Porteiro do Dia (2016), Reforma (2018) e Seguindo Todos os Protocolos (2022), enquanto o segundo frequentou os maiores festivais do mundo por obras como Filme para Poeta Cego (2012), Nova Dubai (2014), Lembro Mais dos Corvos (2018), A Rosa Azul de Novalis (2019) e Três Tigres Tristes (2022).
Agora, eles unem forças em um novo projeto tão poético quanto instigante: Deus Tem AIDS (2022). Os criadores encontram diversos artistas soropositivos cujos trabalhos no teatro, na performance e na poesia refletem a sorologia, a saúde e nossa percepção do HIV / AIDS atualmente. O próprio título provém de um poema delicado, lido por um dos entrevistados. Depois de vencer o Queer Porto e ser exibido no Mix Brasil, Olhar de Cinema e IDFA, o filme está em cartaz nos cinemas brasileiros pela Vitrine Filmes.
O Meio Amargo conversou com a dupla a respeito desse projeto:
De onde surgiu a ideia de um filme com este tema, realizado em co-direção?
Fábio Leal: Isso veio de algo muito pessoal. Eu achei que apenas eu tivesse muito medo desse assunto, muito medo de me contaminar. Perguntei para o Gustavo se ele tinha esse medo também, e ele me disse que sim. Conversei com mais algumas pessoas, e percebi que esse era um medo comum da nossa geração. Lembro de ter visto um filme chamado Estou com AIDS (1985), do David Cardoso. É uma mistura muito louca de pornochanchada com documentário e filme de terror. É um dos primeiros filmes feitos no mundo sobre esse assunto, e está disponível no YouTube. Falei para o Gustavo: “Assiste a esse filme, e se pirar como eu pirei, acho que a gente deveria fazer algo juntos a respeito”. Ele também gostou, e começamos a conversar. Surgiu então um edital, e começamos a escrever.
Gustavo Vinagre: O projeto veio do silêncio que a gente sentia ao redor do tema, e dessa tentativa de dissociar o HIV/AIDS da comunidade LGBTQIA+. Ao mesmo tempo, a gente sentia que havia um número crescente de novas contaminações entre jovens da comunidade, então sentia a necessidade de voltar a associar o HIV, para as pessoas estarem um pouco mais conscientes de tudo que envolve o vírus e a doença.
Sentia a necessidade de voltar a associar o HIV à comunidade LGBTQIA+.
O filme se abre com colagens alarmantes de jornais antigos, quando o tema era tratado com ainda mais preconceito. Vocês partiram da pesquisa historiográfica?
Gustavo Vinagre: A princípio, o projeto era um filme de arquivo. A gente fez uma extensa pesquisa, na intenção de trabalhar as primeiras notícias sobre HIV/AIDS no Brasil. Buscamos reportagens, programas de TV, novelas, etc. Aos poucos, conhecendo pessoas que vivem com o HIV, percebemos a importância de não reforçar esta visão historicista, essas imagens alarmantes dos anos 1980. Inevitavelmente, fomos pensando: que novas imagens existem sobre isso? Quem está pensando sobre HIV hoje em dia? Quem são esses artistas? O viés do filme foi mudando. Decidimos deixar este prólogo, apenas no som, sem mostrar as imagens. Era uma maneira de não esquecer o ponto de partida, não esquecer desta época. Depois, o filme salta para o futuro.
Como chegaram neste grupo de artistas em particular? Todos acolheram de imediato a proposta do filme?
Fábio Leal: Esse elenco se impôs quando a gente começou a fazer recorte dos artistas. Mesmo o médico, Carué Contreiras, foi encontrado dentro de um recorte artístico. Ele estava no Festival Mix Brasil, apresentando um prêmio especial daquele ano, para um filme que retratasse o HIV. Depois nos encontramos com ele de novo num sarau, porque ele traduz poemas. Quando fizemos o recorte das artes, vimos quem propunha novas imagens, para substituir as imagens dos anos 1980. Essas eram praticamente todas as pessoas que mapeamos naquele momento. Espero que existam mais pessoas hoje, três anos depois, do que existiam naquela época, mas este grupo foi aquele que encontramos. Uma pessoa, Maria Sil, participou apenas da canção original, com a música-tema. Não houve uma imposição da parte de ninguém. Quisemos fazer algo horizontal, porque nosso maior medo era que eles se sentissem desrespeitados de alguma forma. A gente sabe como isso pode ser cruel. Uma das pessoas já tinha sido retratada em produções audiovisuais antes, e não tinha sido uma boa experiência. Por isso, conversamos muito a respeito.
Pode ser provocador mesmo, mas, ao mesmo tempo, se o título fosse “Deus Tem Diabetes”, ele soaria tão ofensivo?
O título é bastante forte. Por que decidiram batizar o longa-metragem em referência ao poema Deus Tem AIDS?
Gustavo Vinagre: Essa foi uma longa discussão. O filme teve alguns títulos até chegar nesse. Para a gente, este era o mais impactante, o que mais deslocava o espectador em termos de reflexão. E claro, ele faz referência ao poema do Marcos Visnadi, um dos personagens do filme. Pode ser provocador mesmo, mas, ao mesmo tempo, se o título fosse “Deus Tem Diabetes”, ele soaria tão ofensivo? Por que soaria ofensivo, ou não? Isso nos leva a questionar o lugar onde se colocam o vírus e a doença. Depois que decidimos pelo título, o Fábio assistiu a uma live com o Padre Júlio Lancellotti, onde ele dizia basicamente a mesma coisa. Ele falava algo como: “Deus é uma pessoa com Covid no hospital, Deus está na Cracolândia, Deus tem AIDS”. Quando escutamos isso, tivemos mais certeza de que era o título certo.
A estrutura do filme começa com falas destes artistas, e só então passamos às performances de cada um. Como definiram este percurso?
Fábio Leal: A gente passou por vários cortes na montagem, até chegar nessa estrutura. Ela foi se impondo, porque estas performances e pinturas são o desdobramento de um discurso desenvolvido na cabeça de cada um deles. Para a gente, parecia natural começar com este desabafo, e depois mostrar a forma como esse desabafo se manifestava para cada um.
Gustavo Vinagre: De fato, passamos por várias etapas do processo. No roteiro, contamos com a Tainá Muhringer, que ajudou na pesquisa. Mesmo o roteiro incluía momentos mais ficcionais que acabaram não entrando no filme. Depois a montagem foi feita a várias mãos. A Beatriz Pomar montou com a gente, depois o Quentin Delaroche continuou montando em Recife. Neste processo, mostramos o material para muitas pessoas que vivem com HIV para escutar a opinião deles. Testamos vários formatos até chegarmos nesse.
A gente precisava de um filme inteiramente falado pela perspectiva de pessoas vivendo com HIV. A voz dessas pessoas sempre foi equilibrada com aquela narração cientificista, a voz da razão, do Drauzio Varella.
Que tipo de retornos tiveram dessas pessoas?
Fábio Leal: Por exemplo, existiam momentos em que a gente se colocava, incluindo nossas memórias de infância e colocando em imagens a própria gênese do projeto. Uma das pessoas nos disse: “Me incomoda que vocês falem sobre o medo na infância de vocês enquanto tem pessoas vivendo isso de fato, hoje em dia. Isso provoca um ruído”. Embora eu goste disso, e torço para que a gente ainda faça um curta com este material, a pessoa tinha razão dentro da estrutura da montagem. Aquilo parecia um apêndice, e o filme vive muito bem sem esse curta-metragem. Ele era bonito, mas não cabia no longa que a gente estava fazendo. Vários filmes podem ser feitos sobre esse assunto, e alguns já foram feitos, mas acho que a gente precisava de um filme inteiramente falado pela perspectiva de pessoas vivendo com HIV. A voz dessas pessoas sempre foi equilibrada com aquela narração cientificista, a voz da razão, do Drauzio Varella. Para a gente, era importante que não tivesse nenhum mediador.
Uma fala do filme é muito forte, quando dizem que “o governo é responsável pela epidemia de AIDS no Brasil”. Concordam com isso?
Fábio Leal: Na verdade, não gosto muito de entrar na dinâmica do “concordo” ou “não concordo” com as coisas ditas no filme. Os personagens falam muitas coisas, e às vezes, as ideias se contradizem. O mais importante é ter essa multiplicidade de vozes. Tem gente que não gosta de usar o termo “aidético”, já o poeta quer resgatar esse termo. Tem gente que se incomoda com a performance do sangue, já outros defendem a importância dela. Algumas pessoas enxergam essa performance de uma maneira, e depois Ernest Filho apresenta outra leitura. É menos sobre concordar ou não concordar, e mais abrir o espaço para que diversas opiniões sobre esse assunto sejam ditas, e nada seja monolítico.
Espero que todo o retrocesso do governo Bolsonaro seja revertido, e que as políticas públicas estejam asseguradas.
Deus Tem AIDS se encerra com a menção ao retrocesso no tema durante o governo Bolsonaro. Podemos perceber o filme de outra maneira, agora que nos encaminhamos ao fim dessa gestão?
Gustavo Vinagre: Espero que o filme seja percebido de outra maneira sim. Espero que todo o retrocesso seja revertido, e que essas políticas públicas estejam asseguradas. Espero que os remédios estejam garantidos, e que a gente pare de temer coisas muito básicas que passamos a temer nos anos Bolsonaro.
Fábio Leal: O filme foi muito impactado por esse governo. A gente filmou no primeiro ano do governo Bolsonaro, e finalizamos no ano passado, depois da grande onda da Covid. Até a questão dos números começou a impactar o filme. Até 2019, tínhamos 10 mil a 12 mil pessoas por ano morrendo de uma doença evitável. Depois, veio uma doença que matou 350 mil pessoas num ano, e muito mais no ano seguinte. A realidade acabou dando um sacolejo no filme. Ao mesmo tempo, tinha a ideia de que cada número tem uma história por trás, e a gente não podia se perder no mar de números. O filme continuou vivo, em partes por causa dessas questões. Falamos muito de saúde nesses últimos anos. Isso acabou ajudando a reflexão sobre o filme.
Vocês têm sido bastante produtivos nesta fase particularmente difícil para o cinema brasileiro. Além de Deus Tem AIDS, Fábio acaba de lançar Seguindo Todos os Protocolos, e Gustavo está exibindo Três Tigres Tristes em festivais. Como percebem as condições de lançamento de seus filmes agora?
Gustavo Vinagre: Sinto que é bem difícil lançar filmes agora. Com Três Tigres Tristes, ainda não sabemos como vai ser o lançamento. Não existem editais para isso agora, e não tem dinheiro suficiente. Agora, com a mudança de governo, uma nova esperança vem. Mas o filme estreou em Berlim em fevereiro de 2022, e até agora, não temos um plano concreto de lançamento.
Fábio Leal: No meu caso, se não fosse a Sessão Vitrine, eu muito provavelmente ainda não teria lançado nos cinemas Seguindo Todos os Protocolos. Eles pegam o orçamento que seria para o lançamento de um filme, e fazem um lançamento conjunto, dividido para quatro, cinco filmes. Acho particularmente complicada a questão da distribuição. No momento, quase nenhum filme nacional ultrapassa 10 mil espectadores, mesmo as produções grandes. De todos os filmes lançados nestes últimos meses, como Carvão, O Clube dos Anjos, Paloma, o único que teve uma carreira muito boa no cinema foi Marte Um, em função de ser nosso representante no Oscar. Isso deu tempo para o boca a boca desempenhar seu papel. Hoje, temos lançamentos muito rápidos: são poucos horários, às vezes um por dia, em cada cidade. Na semana seguinte, ele já é colocado no horário de 13h30, quando ninguém vai ver. Na terceira semana, o filme já foi embora, e não deu tempo de as pessoas comentarem umas com as outras. Está bem difícil.
Gustavo Vinagre: Está praticamente inviável. O preço de um ingresso hoje é de 30, 40 reais. As pessoas nem têm o que comer. É quase um cenário de guerra: como levar as pessoas aos cinemas nessa situação?
Fábio Leal: E mesmo no streaming, o filme brasileiro é jogado atrás de 35 gavetas na plataforma, e o título não é encontrado. Ele está lá, mas ninguém vê. Precisamos pensar em dinheiro para marketing, para a divulgação. Sinto que mesmo o marketing dos filmes ainda está cristalizado no modelo de cinco anos atrás, numa época em que as plataformas de mídias sociais entregavam mais organicamente. Hoje estamos reféns destes algoritmos para tudo.