“Estava interessado na pior versão de nós mesmos”, explica Fábio Leal, diretor de Seguindo Todos os Protocolos

Nesta quinta-feira, 30 de junho, chega aos cinemas uma curiosa comédia produzida durante a pandemia, sobre o período de isolamento social: Seguindo Todos os Protocolos. O diretor e roteirista Fábio Leal interpreta o personagem principal, Francisco, rapaz que tem levado uma vida solitária, preso em seu apartamento, evitando contato com amigos e familiares. No entanto, ele está solitário e carente de sexo, o que desperta a curiosidade para ter encontros com outros homens de maneira segura.

O autor brinca com nossas paranoias, com a desinformação, a relação com a tecnologia e a insegurança em relação aos corpos. Para Leal, o projeto foi imaginado para ser visto neste exato momento de reabertura, quando temos o distanciamento necessário para rir de nossos exageros e fobias. Ele conversou com o Meio Amargo a respeito do longa-metragem, distribuído pela Vitrine Filmes:

Qual é a importância do humor para representar algo tão sério quanto a pandemia de Covid-19?

O humor dá a oportunidade de falar coisas que a gente não falaria normalmente. Para mim, era bem importante neste filme ter um diálogo mais franco. Quando penso no humor, lembro da figura do bobo da corte. Ele era o único que tinha a possibilidade real — no sentido da realeza — de falar as verdades para o rei, porque usava do humor. Hoje em dia, é mais importante do que nunca falar sobre as coisas de modo aberto. Estamos num lugar de não falar as verdades, o que pensamos. Temos muito medo do que o outro vai pensar. Mais do que censura, temos uma autocensura. Vamos nos tolhendo. Espero que este período esteja chegando a um ponto de crise. O humor ajuda a tirar este peso, permitindo olhar para coisas dolorosas com certo distanciamento. Este já era um filme de época enquanto a gente filmava: já falávamos de um momento anterior da pandemia. Isso nos dava distanciamento para falar sobre o que era exagerado, mas não se notava no início, ou sobre o que era mais neurose do que ciência. Dava para olhar para esta época anterior com humor e com afeto.

Fábio Leal como Francisco em Seguindo Todos os Protocolos

Considera positivo, então, que se assista a Seguindo Todos os Protocolos em fase de reabertura dos eventos presenciais?

Esse filme sempre foi feito para ser visto num momento de reabertura. Fiquei muito triste quando ele passou na Mostra de Tiradentes online, porque queria que ele fosse a celebração de um novo tempo, até pelo final da trama. Quando finalmente consegui ver o filme com a plateia, gostei mais da experiência. Dá para sentir as pessoas se reconhecendo, se irmanando na tela, enquanto enxergam algo tão absurdo pelo que passamos. Tenho visto um medo grande das pessoas em retratarem a pandemia nos filmes e nas séries. Acho esquisito não ter filmes em que as pessoas usam máscara, ou em que estão fazendo teste de Covid. Isso se tornou parte da nossa rotina, e me causa um sentimento esquisito de pouca identificação, quando vejo um filme contemporâneo que finge que isso não aconteceu, mesmo tendo sido filmado durante a pandemia. Podemos fazer um paralelo com a pandemia da AIDS: quando ela surgiu, era setorizada em certos grupos da sociedade. Além disso, avançou de maneira mais lenta. Esta pandemia atual se impôs em poucos meses, e afetou a vida de absolutamente todas as pessoas vivendo neste mundo. Um audiovisual que se recuse a abordar este período é muito esquisito. 

Pretende levar a experiência de um filme literalmente caseiro, de baixo orçamento, para suas próximas produções? Ou isso vale apenas para o tempo da pandemia?

Meu próximo projeto se chama O Vale dos Homossexuais, e vai ser filmado 100% em externas — pelo menos, até agora. Meu curta anterior, Reforma, traz o mesmo personagem, o Chico, e também é um filme de apartamento. Isso já é algo que eu explorava — não apenas um filme de internas, mas também a dramaticidade de corpos nus no espaço do apartamento. Este é o lugar onde a gente se permite se fragilizar. Quero continuar fazendo filmes assim. Em todos os meus filmes, tirando o documentário Deus Tem AIDS, eu me coloco como ator. Sou ator inicialmente, formado em teatro. Comecei a dirigir muito pela vontade de trabalhar como ator, mas não ver espaço. Nunca havia personagens para mim. Sempre diziam: “Neste filme, não tem personagem para você”, “Não tem alguém do seu tipo físico”. Depois de várias negativas, decidi fazer filmes onde eu coubesse. Tenho vontade de continuar por isso.

Fábio Leal como Francisco em Seguindo Todos os Protocolos

Que relação você tem com o Francisco? Ele pode ser visto como um alter-ego? Existe algo de autobiográfico neste caso?

Se as pessoas só conseguem enxergar uma representação autobiográfica, como se eu estivesse falando de mim mesmo, tudo bem. Mas os filmes não nascem assim. Vejo várias coisas que já aconteceram na minha vida, mas elas passam por uma ficcionalização. Aquele é um personagem; não sou eu. Diversas coisas são completamente diferentes de mim neste personagem. Não me incomoda a leitura autobiográfica, mas também não é algo que eu procuro. Sei apenas que é um personagem. Não reajo da mesma maneira que o Chico, e nem todas aquelas coisas aconteceram comigo. Pego algumas coisas que aconteceram aos amigos, invento outras, reprocesso episódios que de fato aconteceram. Eu preciso da ficção para criar estes filmes. Não me interessaria fazer um documentário sobre mim mesmo. Até a autoficção está longe do que eu faço, embora ainda tenha algo de mim. É algo mais puramente ficcional mesmo.

De que maneira Seguindo Todos os Procolos expande sua discussão sobre a padronização dos corpos?

No Reforma, eu me vi num lugar confortável, de certa forma, dentro de um debate que convencionamos chamar de identitário. Era quase como se eu visse as pessoas, que talvez não gostassem do projeto, melindradas porque não poderiam discutir isso. Não poderiam falar sobre um corpo gordo. A blindagem moral é algo que me incomoda, porque o dissenso é necessário. Ainda precisamos entender como discordar sem ferir o outro; sem debochar nem ser preconceituoso ou discriminatório. Mas para além de todas as questões que Reforma e Seguindo Todos os Protocolos discutem, existe o filme. Acho meio triste que a gente tenha perdido o jeito de ver o filme enquanto tal, para além das questões que ele traz para discutir. Tenho visto muito isso na crítica e no público: não se enxerga o filme enquanto filme, apenas a qualidade da mensagem dele. No Reforma, senti falta de saber o que as pessoas achavam do filme enquanto filme, cinematograficamente falando. É claro que essas coisas estão engendradas de modo difícil de separar — o filme, e as questões que ele trata. Mas é justamente essa a beleza de apreciar um filme e falar sobre ele.
Por isso, em Seguindo Todos os Protocolos, quis me arriscar um pouco e entender as questões dos corpos, da identidade. Como eu aceito ou não o outro? Temos criado uma persona nas redes sociais. Obviamente, esta persona representa a nossa “melhor versão”. Neste filme, eu estava interessado na pior versão de nós mesmos, no que não mostramos publicamente, no que achamos que não somos. Penso nos nossos racismos, gordofobias, machismos, misoginias. Enquanto a gente não se confrontar aos nossos demônios de fato, é muito mais difícil caminhar para um lugar social interessante. Por outro lado, nossos demônios são muito mais interessantes enquanto material de drama do que as nossas qualidades. Tenho visto alguns filmes “bom moço”, e entendo a proposta de mostrar apenas pessoas muito legais. Existe uma positividade nesse retrato, mas o drama vem de onde — no sentido de dramaturgia? Onde estão os conflitos? Onde está vida? Vida é conflito: eu tenho uma visão, você tem outra, e precisamos resolver isso. É isso que me interessa no cinema, e quanto mais dissenso, melhor.

Seguindo Todos os Protocolos

Seguindo Todos os Protocolos retrata o que passamos a chamar de “solidão gay”? Existem especificidades na homoafetividade em relação aos afetos heterossexuais?

Tenho certa dificuldade com esse debate. Enxergo um essencialismo nisso, como se o sujeito e suas particularidades fossem excluídos do debate. Não sei se existe uma solidão gay universal. Acho que existe talvez uma solidão contemporânea. Temos discussões sobre poliamor, relacionamentos abertos, monogamia ou não-monogamia. Nem todo mundo consegue se inserir neste modus vivendi. A comunidade gay, desde muito tempo, tem tentado expandir esta visão de uma relação monogâmica nos moldes heteronormativos. Para algumas pessoas, esta é a vontade. Vários gays querem estar num relacionamento monogâmico, estável, que lide com o ciúme dentro de uma perspectiva caseira. Isso vem de certos embates contemporâneos, desde o Bate-papo UOL e aplicativos como Grindr, chegando nos relacionamentos heterossexuais, que também têm seus aplicativos. Tenho dificuldade em generalizar o que seria uma solidão gay em contraponto à solidão hétero. Este mote da solidão precisa ser visto por outros recortes: a solidão da mulher negra, a solidão do homem gay negro. Quando vou a fundo, vejo que estas solidões são específicas também.

Tinha a preocupação que o filme contivesse uma estética queer, para além da temática e dos personagens queers?

Não. Eu não sou acadêmico, e sinto que essa expectativa vem muito mais de quem estuda os filmes do que de quem os faz — exceto quando a pessoa que faz também está inserida no meio acadêmico. Não é o meu caso. Nem sei o que seria uma estética queer. Se as pessoas que estudam quiserem inserir o filme dentro de uma estética queer e colocá-lo nessa prateleira, ótimo. Se não quiserem, achando que eu fiz um filme gay sem estética queer, tudo bem também. Para mim, seria esquisito estar preocupado com isso a priori. Não quero me conformar a uma estética que se convencionou que as pessoas LGBTQIA+ deveriam seguir. Talvez isso esteja super inserido no projeto porque estou dentro do meio: estas referências vêm até mim, isso faz parte do que eu consumo. Mas racionalmente, não tenho uma vontade de me inserir dentro deste estilo estético. Até porque não sei exatamente o que seria uma estética queer.

Fábio Leal como Francisco em Seguindo Todos os Protocolos

Depois de passar por diversos festivais, percebeu uma reação diferente nos públicos, de acordo com região ou país? Este me parece um filme bastante brasileiro.

O filme está começando a rodar outros países agora. Ele fez a estreia internacional no Frameline, Festival LGBT de São Francisco. Tenho acompanhado no Letterboxd. Vi dois comentários muito elogiosos de pessoas que vivem nos Estados Unidos. Mas ainda não sei. Acho que algo se perde na tradução do modo de vida. Também acho um filme muito representativo desse Brasil de agora. Tenho vontade de saber se eles acham graça das mesmas coisas que nós. Mesmo no Brasil, noto diferenças. Aqui no Recife, as risadas eram muito mais constantes, a todo momento. Em São Paulo, já eram mais setorizadas. Na cena com o Marcus Curvelo, as risadas eram contidas: as pessoas não sabiam ao certo se podiam rir daquilo ou não. Adoro assistir ao filme com plateia. É especial ver quando as pessoas se soltam e se autorizam a rir de certas coisas. Isso é muito próprio da experiência coletiva, porque um espectador vai autorizando o outro a rir. Estou animado com a estreia e com as viagens do filme para entender como ele bate em diversos públicos. Mesmo na comunidade gay, sei que a comunidade gay de São Francisco é diferente daquela do Recife, que é diferente daquela em São Paulo, de Curitiba, etc. É bom perceber estas nuances em algo que às vezes acabamos generalizando.

De fato, este é um humor de desconforto. Nem sempre sabemos se é aceitável rir das cenas, e talvez seja incômodo nos enxergar em tela.

Me incomoda quando eu vejo que o realizador não está implicado no que realiza. Talvez o fato de me escalar nos filmes seja porque eu gosto de rir de mim mesmo. Gosto das minhas contradições, dos meus erros. A gente tem muito medo de errar publicamente. É importante para a nossa evolução aprender a errar e contar nossos erros de uma forma menos violenta. Estamos sofrendo muita violência, principalmente no Brasil. O humor ajuda a deixar as coisas um pouco mais palatáveis. 

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