O Golpista do Tinder (2022)

A vingança pela imagem

título original (ano)
The Tinder Swindler (2022)
país / Gênero
Reino Unido / Documentário
duração
114 minutos
direção
Felicity Morris
Com
Simon Leviev, Cecilie Fjellhøy, Pernilla Sjöholm, Kristoffer Kumar, Ayleen Charlotte, Natalie Remøe Hansen
visto em
Netflix

O Golpista do Tinder (2022) possui uma estrutura bastante inteligente. O longa-metragem dedica praticamente metade de sua duração a construir a história de amor de Cecilie Fjellhøy, Pernilla Sjöholm e Ayleen Charlotte por Simon Leviev, antes de se consagrar ao rapaz e torná-lo protagonista. Sabemos que elas serão alvo de um esquema fraudulento, tanto pelo título e sinopse quanto pelo resumo dos cinco minutos iniciais. Em outras palavras, o roteiro jamais oferece uma surpresa ao espectador.

Mesmo assim, garante que esta disputa de narrativas penda a favor das vítimas, capazes de controlar o discurso por suas falas. A história do falsificador será narrada pelas mulheres, que assumem o controle da trama e conseguem virar a chave do poder na relação de gêneros. Oferece-se uma experiência de expurgo ao trio, e também ao espectador, ao vermos o feitiço virar contra o feiticeiro. Em suas artimanhas, o sujeito cria uma imagem falsa para seduzir e vender às namoradas a versão que deseja: a de um bilionário poderoso e perseguido que, depois de muitos jantares e viagens luxuosas, começa a pedir dinheiro às companheiras, supostamente para fugir ao ataque de inimigos poderosos.

Depois, são elas que dominam o ponto de vista, tornado muito mais popular do que a narrativa dele, graças ao aparato de marketing da Netflix: Leviev se torna o verdadeiro vilão, manipulador, tendo orquestrado um esquema de pirâmide para saquear uma mulher enquanto se relaciona com a seguinte. 

Assim, elas combatem a imagem com a imagem; a mídia com a mídia. Estamos num terreno plenamente contemporâneo: a guerra de informações, dados e versões. Um mundo de fake news, “fatos alternativos” e pretensos especialistas. Aqui, vence (simbolicamente, pelo menos) aquele capaz de suscitar maior aderência, em termos de curtidas e visualizações, ao seu lado da história. Leviev continua livre e, ao que tudo indica, praticando golpes idênticos em novas namoradas.

No entanto, ao olhar do público, o projeto promove a oportunidade mista de justiça e vingança. É importante que tenha sido dirigido por uma mulher, Felicity Morris, dotada de ampla experiência em documentários de teor jornalístico. Ela garante que as vítimas possam se expressar sem amarras, nem condenação moral por parte do filme. O roteiro insiste em revelar tanto o apoio recebido nas redes sociais, quanto as acusações de terem sido aproveitadoras do falso herdeiro de uma empresa de diamantes.

Estas mulheres combatem a imagem com a imagem; a mídia com a mídia.

Ora, o ponto de vista se alia às três portas-vozes, fugindo à armadilha de considerá-las ingênuas, interesseiras ou ignorantes. Pelo contrário: após a fábula de amor inicial, idealizada pela trilha sonora, pelas reconstituições e imagens de arquivo, trata de sublinhar a força delas para expor seu algoz e impedi-lo de seguir em atividade. O projeto dedica mais tempo demonstrando solidariedade às mulheres do que transformando Simon em vilão.

Além disso, O Golpista do Tinder ultrapassa a esfera do caso específico do trapaceiro. Morris questiona a autoficção promovida em tempos de redes sociais. Quando Cecilie Fjellhøy expõe a idealização derivada de A Bela e a Fera e outros filmes do gênero, a montagem procura comédias românticas de Hollywood para ilustrar este imaginário da felicidade instantânea condicionada à chegada de um príncipe provisor.

Ao perceber que Simon saía com novas mulheres, Pernilla Sjöholm aceitou ser uma amiga com interesses sexuais, porém livre de amarras — inclusive, viajando com a nova namorada dele. A diretora se coloca em cena, em off, para descobrir que uma delas teve mais de mil “matches” em aplicativos de paquera, enquanto a outra ficou deslumbrada com fotos de praias e com os belos ternos do homem.

Buscando algum benefício próprio ou não, elas se filiaram à ideia de que homens ricos seriam confiáveis (afinal, por que precisariam roubar?), protegidos e protetores. Existe uma mistura de romance e função paterna nestes relacionamentos com o sujeito ausente durante a maior parte do tempo, porém capaz de se redimir com um presente caríssimo a cada retorno de viagem.

A montagem evita elegantemente mencionar o prazer sexual nos relacionamentos, dedicando-se à ilusão, fornecida em partes por Simon, mas construída em paralelo pelas próprias vítimas. O filme explora a tendência a crer naquilo que seria favorável para si, na interpretação que condiz com nossos desejos. A prudência e o real são postos entre parêntese diante da proposta de uma vida de hedonismo.

É uma pena que um discurso tão interessante seja embalado numa estrutura acadêmica que mal ultrapassa o formato da reportagem. O apuro visual confirma a condição de um filme endinheirado e polido, ainda que próximo do jornalismo convencional. Por um lado, alguns recursos visuais surtem efeito positivo: a montagem em paralelo entre Cecilie e Pernilla, a ideia de deixar toda a história de Ayleen para o terço final; a fala das mulheres a um ponto distante da câmera, ao invés das entrevistas formais.

Por outro lado, várias escolhas prejudicam o resultado: os planos aéreos genéricos de cada cidade mencionada; a reconstituição de jantares utilizando um modelo de rosto cortado pelo enquadramento; a trilha sonora durante a chegada de mensagens de texto; a aceleração destas trocas via WhatsApp para efeito dramático. Para um longa-metragem tão interessado em fornecer uma versão verdadeira para se opor àquela oficial, seria importante reduzir a intensa carga de ficcionalização, o que inclui planos escuros e chuvosos nas cenas de suspense; fotografias de Simon de aparência nervosa durante as revelações de seus golpes; e a romantização do trabalho (dependente apenas de força de vontade, segundo a edição) da polícia e dos jornalistas.

Os letreiros finais insistem que o Tinder não seria culpado pelas ações deste usuário, evitando um processo judicial contra a poderosa empresa; e que a verdadeira família Leviev não teria qualquer relação com o rapaz israelense que usurpou seu sobrenome para efeito de status. Nota-se o medo de apontar dedos à ineficiência da polícia internacional, ainda que o documentário exponha o fato de ser ameaçado de processos pelo próprio farsante. 

Este parece ser a forma de audácia permitida nos grandes projetos de plataformas de streaming: a certeza de ter acesso irrestrito a delegacias, dados e informações secretas, tratamento plástico impecável de na reconstituição de ligações e chamadas, em troca de abrir mão de imagens, sons ou sugestões questionadoras.

O discurso efetua uma bela leitura das relações díspares entre gêneros, poderes e classes sociais, revelando a ruína por trás de um romantismo arcaico, e perversamente bem-adaptado às tecnologias digitais. Em contrapartida, mostra-se muito mais tímido ao confrontar o sistema que permite a Simon Leviev existir e continuar em atividade, ou a tantos veículos de mídia se calarem a respeito do caso. Teria sido tão importante descobrir este episódio quanto se interrogar a respeito dos motivos pelos quais ele ainda não foi detido e punido.

O filme se mostra tímido ao confrontar o sistema que permite a Simon Leviev existir e continuar em atividade.

Afinal, sem um posicionamento político firme, uma iniciativa do tipo corre o risco de apenas transformar seu algoz num ícone exótico da cultura pop (a exemplo de Tiger King, Anna Delvey e tantos outros), exponencializando sua visibilidade e o interesse pela persona. Este movimento seria contrário ao distanciamento crítico em relação aos seus atos.

Existe uma diferença fundamental entre se deliciar com um crime distante e repudiá-lo. Simon corre o risco de terminar a aventura numa posição confortável e fetichizada, não muito diferente dos cafajestes endinheirados e sedutores de ficções como Cinquenta Tons de Cinza e 365 Dias.

O Golpista do Tinder (2022)
6
Nota 6/10

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