O primeiro dia da mostra competitiva no 11º Olhar de Cinema: Festival Internacional de Curitiba trouxe uma oportunidade rara aos críticos e espectadores: sessões de duas diretoras negras contemporâneas, no mesmo dia, apresentadas fora de uma mostra consagrada especificamente ao recorte racial e de gênero. Em outras palavras, as vozes, perspectivas e corpos femininos negros ocuparam as telas do evento de maneira orgânica e sem alarde — como esperamos que venha a se tornar uma regra num futuro próximo.
O destaque ficou por conta de Freda (2021), dirigido por Gessica Généus. Selecionado no Festival de Cannes, o drama se passa em Porto Príncipe, no Haiti, onde três mulheres encontram diferentes soluções para fugir à precariedade financeira e à violência dos homens. Freda procura autonomia através dos estudos, sua irmã sonha em se casar com um homem rico, e a mãe enxerga melhores perspectivas na mudança para outro país. O cotidiano é retratado sem alarde nem sentimento de urgência, sugerindo que aqueles problemas existem aos moradores desde sempre, e não constituem uma crise particular. A diretora consegue combinar afeto por seu país e uma crítica dura ao atual estado das coisas. Leia a nossa crítica.
Este estilo difere radicalmente daquele empregado por Miryam Charles em Esta Casa (2022). Experiente curta-metragista experimental, a canadense apresenta seu primeiro longa-metragem, selecionado no Festival de Berlim. Ela parte de uma história real: a de uma garota de quatorze anos no Haiti, que se enforcou depois de ser brutalmente estuprada. Ao invés de uma reconstituição clássica, ela aposta numa experiência metalinguística que combina recriações em estúdio, fragmentos de casas e questionamentos via narração em off. A obra luta para que “a história não seja contada sem nós (mulheres negras) mais uma vez”. Leia a nossa crítica.
Apesar de habitarem continentes distintos, com vivências que parecem ser muito diferentes, ambas artistas negras dialogam com a precariedade em seus países e a questão da identidade (nacional ou feminina) tendo o Haiti como ponto de partida. A curadoria do Olhar de Cinema efetua uma bela aproximação destes dois títulos, favorecendo as leituras em conjunto e a perspectiva de uma mensagem mais ampla por parte destas novas criadoras do audiovisual.
O dia também trouxe a exibição do drama colombiano francês A Ferrugem (2021), na mostra competitiva. O diretor Juan Sebastián Mesa acompanha a vida de um trabalhador do campo, acertando as contas com um trauma familiar e com as duas mulheres que ama, enquanto insiste em sustentar o modo de vida ligado à natureza, ao invés de partir para a cidade. A representação naturalista seria mais interessante caso o diretor evitasse diversos recursos vaidosos, a exemplo de câmeras giratórias e o uso indiscriminado de drones. Os atores também apresentam prestações desiguais. Mesmo assim, dialoga com Freda no retrato de uma juventude dividida entre permanecer em seu país pobre ou buscar a sorte em outro lugar. Leia a nossa crítica.
A sexta-feira, 3 de junho, terá a exibição de mais um filme da mostra competitiva: o brasileiro Filme Particular, de Janaína Nagata, além das reprises de Freda e A Ferrugem. O dia está particularmente rico em exibições de clássicos, com projeções dos documentários A Opinião Pública (1967), de Arnaldo Jabor; Viramundo (1965), de Geraldo Sarno, e Nanook, o Esquimó (1922), de Robert Flaherty.