Para a sua primeira edição, o Bonito Cine Sur — Festival de Cinema Sul-Americano de Bonito (MS) recorreu a um crítico e jornalista de ampla experiência para a curadoria. A escolha dos filmes coube a José Geraldo Couto, que contribuiu durante vinte anos com a Folha de São Paulo, e depois, com o blog do Instituto Moreira Salles. Além disso, encarregou-se da tradução de obras em língua inglesa (Henry James, Truman Capote, Martin Scorsese) e espanhola (Adolfo Bioy Casares, Enrique Vila-Matas).
Graças à seleção, o público sul-mato-grossense se deparou com grande variedade de obras do continente, tanto em vertente mais popular (o peruano La Pampa, o paraguaio Lucette) quanto premissas arriscadas, próximas do cinema experimental (o chileno Green Grass, o argentino A Bruxa de Hitler). Em entrevista ao Meio Amargo, José Geraldo Couto explica os critérios que nortearam estas escolhas:
Qual foi a impressão geral dos filmes inscritos nesta edição?
Foram muitos filmes, de praticamente todos os países do continente. A qualidade deles era muito desigual. Tinham filmes excelentes — inclusive lamentei deixar alguns de fora. No entanto, outros eram bem amadores. Entre os curtas, tinham alguns filmes de conclusão de curso que ainda careciam de qualidade mínima de produção e comunicação. Dessas centenas de filmes, boa parte foi eliminada sumariamente porque não tinha a qualidade necessária, mesmo.
Entre os outros, percebi uma variedade de temas, estilos e linguagens. Foi bom ter este contato para traçar um panorama geral destas cinematografias. Na hora da escolha, a gente pretendeu contemplar justamente essa diversidade. Ao invés de optar por um tipo específico de filmes, deixamos uma linha heterogênea de propósito. Assim, mostramos as várias vertentes que o cinema sul-americano possui.
Imagino que alguns países tivessem mais filmes interessantes do que outros, mas você não quisesse monopolizar com um país só. Talvez a Argentina, o Chile…
Como era a primeira edição do festival, que ainda está desenhando o seu perfil, a ideia era ter o máximo de representatividade possível. Queria contemplar o maior número possível de países, sem violentar os critérios de qualidade. Mas era importante ter uma amplitude de origens e países. Na seleção de curtas e longas, praticamente todos os países estão contemplados, com exceção das Guianas e de Suriname. Mesmo assim, curiosamente, eles estão presentes na mostra de animação.
Na competição sul-americana, temos todos os outros países, incluindo o Equador, e lugares que não costumamos pensar em termos de cinematografia. As produções que chegam ao Brasil costumam ser aquelas da Argentina, do Chile, às vezes do Uruguai. Mas foi bom que, desta vez, pudemos incluir países aos quais dificilmente temos acesso, como Bolívia, Venezuela, Paraguai. Para nós, era fundamental ter representantes do Paraguai e da Bolívia, que fazem fronteira com o Mato Grosso do Sul.
Para nós, era fundamental ter representantes do Paraguai e da Bolívia, que fazem fronteira com o Mato Grosso do Sul.
No caso do cinema brasileiro, tivemos um único representante na mostra competitiva de longas-metragens: o cearense Mais Pesado É o Céu. Neste caso, acredito que você tivesse muitas escolhas.
Havia também uma preferência da direção do festival por filmes de ficção. Assim que comecei a ver os filmes, percebi a presença de documentários fortes entre os inscritos. É uma ótima safra. Mas a direção afirmou que preferia filmes de ficção. Como ainda não tinha sido realizada nenhuma edição, e não existe cinema em Bonito, seria mais fácil atrair o público com obras narrativas de ficção, que contassem histórias interessantes. Assim, escolhi este filme de ficção que me parecia bem forte.
Tinham outros títulos — três ou quatro — que estariam no mesmo nível de relevância e qualidade cinematográfica. É difícil dizer por que escolhi exatamente Mais Pesado É o Céu, mas ele me agrada muito, e acreditei que pudesse se comunicar com o público local. O fato de ser um filme do Ceará me pareceu interessante também. Só temos um longa-metragem e um curta-metragem brasileiros nas mostras competitivas. O curta vem do Sul, e o longa, do Ceará. Gostei disso. Além disso, vários filmes aqui da região foram colocados na mostra sul-mato-grossense. Com isso, os filmes da região não necessariamente entrariam na competição sul-americana.
Mas, voltando aos documentários, um dos filmes que me parecia essencial ser exibido era Amazônia, a Nova Minamata?, do Jorge Bodanzky. Conversei com o diretor do festival e sugeri: “Se esse filme não entrar na mostra competitiva, pela preferência por ficções, acredito que ele deva entrar ou na mostra ambiental, ou como exibição especial”. Mas ele não poderia ser deixado de fora. E foi colocado na mostra ambiental. Outro que eu sugeri para a mostra ambiental foi A Febre da Mata, filme lindíssimo feito por um cineasta indígena, com equipe inteira indígena. É um filme de qualidade incrível. Nesse caso, também, me parecia essencial entrar.
Mas é claro que toda a seleção é discutível, e envolve certo grau de subjetividade. Não vou tirar a minha responsabilidade por eventuais más escolhas. Mesmo assim, acredito que foi possível contemplar a qualidade dos filmes, o interesse que teriam ao público local, e a necessidade de criar um perfil claro ao festival.
Você mencionou a diversidade geográfica. Foram considerados também critérios de paridade de gênero, raça, etnia?
Esse não foi um critério inicial, digamos, mas ficava contente quando via um filme forte dirigido por cineasta mulher, ou indígena, ou negra. Me alegrava poder fazer uma seleção que não trouxesse apenas homens brancos de classe-média. Acabou dando certo. Por exemplo, exibimos A Bruxa de Hitler, co-dirigido por uma mulher, além de ser um filme bastante feminino. Vários filmes sul-americanos são dirigidos por cineastas indígenas, como Lucette, de Mburucuya Fleitas. Os representantes bolivianos e peruanos aqui no festival são marcadamente indígenas. O curta-metragem chileno Estrelas do Deserto também vem de uma diretora, a Katherina Harder, e o único curta-metragem documentário da competição vem de uma pessoa transexual, sobre uma mulher indígena trans.
Este também é um dos papéis do festival: contemplar diversas realidades geográficas e humanas. Não estabelecemos previamente cotas, mas fico contente de saber que existe uma diversidade considerável, ainda que reste uma maioria de filmes dirigidos por homens. Espero que, no ano que vem, os filmes mais fortes tenham essas origens menos contempladas no circuito comercial.
Ficava contente quando via um filme forte dirigido por cineasta mulher, ou indígena, ou negra. Me alegrava poder fazer uma seleção que não trouxesse apenas homens brancos de classe-média.
Você falou sobre o perfil do festival, e a preocupação da direção em trazer uma seleção popular. Mesmo assim, ainda existem filmes bastante existentes, como Green Grass e A Bruxa de Hitler.
De fato, partimos da ideia básica de pensar no público e na comunicação com um espectador pouco acostumado ao cinema. Me parece que nunca existiu cinema em Bonito — a cidade é bastante recente, aliás. A experiência das pessoas com o audiovisual vem muito de séries e telenovelas, além de filmes na televisão. É um repertório limitado. Mesmo assim, não quis ser condescendente, ou paternalista a ponto de apresentar apenas filmes considerados fáceis e digestivos. Achava importante ter uma mescla para desafiar esse público, e mostrar que existem formas diferentes de cinema. Eles têm pouco contato com o cinema, então quando surge essa possibilidade, me parece importante que vejam várias vertentes, tendências e possibilidades de linguagem.
Mesmo que alguns espectadores saiam no meio do filme, ou terminem a sessão falando mal, esta será uma semente. Alguns ficarão tocados e sensibilizados com estes filmes, e passarão adiante. Vão querer conhecer outras cinematografias para além da hegemônica. Acredito que o festival consegue contemplar filmes mais exigentes também. Para o público que frequenta a sala de exibição, acredito que exista uma parcela disposta a ser estimulada e exigida por essas obras. Esta seria uma escolha mais produtiva e honesta, ao invés de apostar apenas em filmes com a certeza de agradar, ou que trouxessem interesse do star system brasileiro e sul-americano. A ideia não era que as pessoas fossem à sala apenas para ver celebridades. Isso não acrescentaria à formação de público de cinema, nem à formação de gosto e de cultura cinematográfica.
Enfim, são muitas ambições para uma edição só. Se a gente for pensar em todas as possibilidades e problemas e erros possíveis, ficamos paralisados. Acredito que um pouco de riscos seja benéfico. Vamos aprender com os possíveis erros, também ouvindo o retorno do público para uma próxima edição. O Nilson Rodrigues, diretor do festival, me disse que gostaria de separar a competição entre ficções e documentários. Ainda não tenho uma opinião formada a respeito, porque vários festivais separam os dois, enquanto os outros colocam ambos para concorrer em paralelo. Mas acho que teria, pelo menos, a grande vantagem de existirem mais documentários no festival. Tem aparecido uma leva excelente de documentários, e lamento ter deixado alguns deles de fora.
Tem escutado, ou percebido reações inesperadas do público aos filmes até agora?
Tenho conversado pouco com os espectadores, mas recebo muitos retornos dos organizadores do festival. Nos primeiros dias, tivemos vários filmes violentos, como Lucette, que aborda uma menina estuprada e morta; e Sigma, filme gaúcho sobre neonazistas. La Pampa também retrata a violência sexual contra meninas no Peru. Isso se concentrou, talvez por descuido nosso na hora de montar a programação. Algumas pessoas se queixaram disso. Precisamos pensar em dosar melhor numa próxima vez. Outras pessoas consideraram Green Grass lento demais, ou difícil de entender. Esse tipo de reação é normal.
Não quero dizer que vamos seguir todas as repercussões e, em consequência, banir este tipo de filme. Mas é importante ter uma ideia geral do que chegou ao público, e de que maneira. Os organizadores pretendem fazer uma pesquisa de opinião a respeito. Outra questão prévia diz respeito à possibilidade de levar as pessoas ao cinema. Não tivemos na primeira edição, mas talvez tenhamos numa segunda edição, caso exista apoio público para isso, o transporte gratuito para levar as pessoas ao cinema. Embora seja uma cidade pequena, ainda existem distâncias grandes entre os moradores e Bonito e o Centro de Convenções, que fica praticamente fora da cidade.
Nós estamos aqui no festival com transporte à disposição, então não percebemos a extrema dificuldade de grande parte do público para ir às salas. Por isso, as sessões não estavam completamente lotadas, mas podemos consertar isso. Primeiro, pelo hábito, demonstrando a disponibilidade e o prazer de ver os filmes, e segundo, facilitando o acesso. Todas as sessões, oficinas e debates são gratuitos, mas como a população ainda não tem o hábito de ir a esse tipo de evento, precisamos facilitar ao máximo, para além dos meios de comunicação, com o acesso às salas. Achei lindo ver as crianças de escolas públicas assistindo aos filmes infantis. Muitas delas nunca tinham ido a uma sala de cinema. É assim que se forma público. É necessário um tempo para isso. Vamos aprendendo com estas questões que podem parecer menores, mas são importantes.
Achei lindo ver as crianças de escolas públicas assistindo aos filmes infantis. Muitas delas nunca tinham ido a uma sala de cinema.
Os filmes também surpreenderam por tratar de grandes temas, como nazismo, neonazismo, bullying, homofobia, tráfico de pessoas. Esta foi uma escolha deliberada, ou representava a média dos filmes inscritos?
As duas coisas. Em partes, representava a média da nova safra sul-americana, que está cheia de filmes voltados a temas candentes e importantes. Mas também teve a decisão de privilegiar obras cujos temas eu e a direção consideramos importantes de debater. É importante discutir neonazismo, preconceito, prostituição infantil. São temas comuns a vários países sul-americanos.
Os problemas de um filme como La Pampa — garimpo ilegal, prostituição infantil, tráfico de pessoas, trabalho escravo — também são vistos com frequência no Brasil, e certamente em outros países vizinhos. O boliviano O Visitante aborda diversos assuntos, entre eles a presença das igrejas neopentecostais, e o tema tem grande repercussão no Brasil.
O tema do nazismo é contemporâneo, não só da América do Sul, embora tenha ocorrido este deslocamento particular de nazistas para Argentina. A questão tem interessado o mundo inteiro atualmente. Existe uma revivescência do período na Europa, na América do Norte. São temas que preocupam as pessoas, e seria interessante que estivessem presentes no festival. Ainda tem a homofobia, a transfobia, a posição da mulher na sociedade.
Um dos temas mais debatidos pelos corredores é a presença de Javier Milei no segundo turno das eleições presidenciais argentinas. O festival até preparou uma carta em repúdio às ideias da extrema-direita. Como vê o cruzamento de pautas políticas entre os países sul-americanos?
Isso tem ficado evidente nos debates. É uma pena que os debates tenham agrupado apenas pessoas do próprio festival, e não tanto aquelas da cidade. Um festival de cinema é muito permeável ao que ocorre em volta. Agora, a questão mais grave e imediata na América do Sul é a presença de Milei nas eleições argentinas. Além de ser mais uma ameaça à democracia, como aconteceu no Brasil e nos Estados Unidos, existe uma ameaça ao cinema argentino. A gente se acostumou à qualidade, à relevância e à reputação que o cinema argentino construiu no mundo.
Agora, isso está sob risco, porque o candidato da extrema-direita prometeu acabar com o INCAA (Instituto Nacional de Cinema e Artes Argentino), que é a base do florescimento do cinema argentino. Então esta questão vem naturalmente, e catalisa as preocupações de vários países sul-americanos, porque quase todos enfrentamos estas dificuldades, incluindo o desafio de fazer face à hegemonia do cinema norte-americano, com os blockbusters. Descobrimos aqui no Bonito Cine Sur que o Paraguai tem há apenas dois anos uma agência reguladora equivalente à Ancine. Isso talvez explique a pequena produção numérica do país. Já o Uruguai tem uma população pequena, mas produz uma quantidade relevante de filmes que viajam o mundo.
Por isso, essa relação entre os cinemas nacionais e seus respectivos poderes públicos e governos veio à tona com força no Bonito Cine Sur. Além disso, o diretor do festival, Nilson Rodrigues, tem grande experiência em políticas culturais. Ele foi diretor do Festival de Brasília, depois criou o BIFF – Brasília International Film Festival. Além disso, ocupou cargos públicos de gestão cultural. Por isso, os eventos dele são marcados pelas discussões sobre políticas culturais. Os convidados que vieram ao evento também trouxeram o interesse de debater estas questões, e prestar solidariedade à Argentina, que é o país da vez, ameaçado pela extrema-direita, que sempre foi anticultura.