A Bruxa de Hitler (2022)

Onde vivem os monstros

título original (ano)
La Bruja de Hitler (2022)
país
Argentina
gênero
Fantasia, Horror
duração
117 minutos
direção
Virna Molina, Ernesto Ardito
elenco
Lucía Knecht, Heinz K. Krattiger, Ema Eraso Villarino, Isadora Ardito, Ulíses D’Atri,
Eleonora Dafcik, Ronaldo Giss, Malena Villarino
visto em
1º Bonito Cine Sur (2023)

Duas famílias comem comportadamente à mesa. Elogiam os pratos, servem mais uma taça de vinho. Trocam gestos de hospitalidade (“Você pode permanecer aqui o quanto quiser”) em um cenário tipicamente burguês, acolhedor. “A luz não está forte demais?”. “Imagina, está ótima assim”. Este seria um jantar qualquer, caso as famílias não possuíssem uma característica peculiar: são dois núcleos nazistas, vivendo na Patagônia de 1961. Os hóspedes alemães não decidiram apenas comer na casa dos amigos — eles estão refugiados na América do Sul.

A Argentina está repleta de bons filmes que lidam, de maneira mais ou menos explícita (e mais ou menos fatual) com o exílio de inúmeros oficiais nazistas no país após o fim da Segunda Guerra. Os cineastas Virna Molina e Ernesto Ardito prefere uma abordagem específica para esta “fábula inspirada em fatos”, de acordo com os letreiros iniciais. Nada de perseguições policiais, de problemas com a sociedade ao redor. 

Pelo contrário, a integralidade da narrativa se concentra em uma dúzia de personagens isolados na propriedade confortável, e devidamente apartada de demais instituições. A câmera jamais deixa esta espécie de sítio, seguindo o exemplo dos moradores. Deste modo, os autores preferem a representação metafórica, sugerindo que os horrores deixados por Hitler contaminaram os dois núcleos e se manifestam na convivência diária, de modo quase inconsciente. Ao invés de levarem as pessoas à guerra, os cineastas trazem a guerra para dentro de casa.

A Bruxa de Hitler nunca perde de vista a responsabilidade ética e histórica. O resultado será confuso, grotesco, perturbador, insano — assim como os cineastas percebem o próprio nazismo.

Talvez poucos espectadores caracterizem A Bruxa de Hitler como uma obra de horror, embora se baseie na perturbação da lógica e dos sentidos típica do gênero. As primeiras imagens explicam que o título seria uma referência a Rosa Braun, linhagem direta do führer. Entretanto, a citação às bruxas apela igualmente à fantasia, ao perigo das mulheres, às práticas antigas de perseguição e segregação social. As noções de caça às bruxas e de bruxas queimadas na fogueira estabelecem relações frutíferas com a analogia ao nazismo.

No caso, o roteiro trata de embaralhar peças, confundir as noções de tempo e espaço, de causa e consequência. A obra acena a um cinema dito experimental, ainda que nunca perca de vista a linha narrativa. Mesmo assim, empresta às linguagens livres a possibilidade de alternar entre a película granulada e o digital nítido; entre os planos muito próximos e os grandes planos angulares; entre a cronologia e a suspensão de parâmetros ao espectador. Busca-se uma comunicação com o público, porém sem efetuar concessões que pudessem agradar e facilitar a compreensão.

A jornada resulta, ao mesmo tempo, próxima demais dos fatos e ícones conhecidos (os moradores fazem a saudação nazista no balcão; comem um bolo com decoração de suásticas) e absurdas, impossíveis, tal qual um pesadelo. A menção a personagens históricos, em tempos precisos, se mistura a fábulas concebidas para a atemporalidade — Chapeuzinho Vermelho, A Bela Adormecida. Referências a quadros de Magritte ou Hopper expandem, em termos culturais, o universo de aspirações. Novamente, é o mundo que se insere forçosamente na casa, provocando ruídos.

O longa-metragem revela, por trás da aparência de polidez, um vasto catálogos de barbáries e perversões na propriedade familiar. Menciona-se o assassinato do filho com deficiências. Estupros acontecem nas matas ao redor. A pedofilia e o incesto se reproduzem pelos corredores, atrás de portas entreabertas. A mãe enlouquecida substitui o filho perdido por um boneco macabro. As pulsões de vida (sexo) e de morte (assassinato, suicídio) impregnam cada cena. Os personagens hipócritas soam condenados a reproduzir os comportamentos que teoricamente condenam — o que inclui a homoafetividade entre meninas. 

A obra trabalha particularmente bem a noção de voyeurismo. O ato de ver e ser visto se torna fundamental para a crescente tensão erótica. O filho observa a garota se exercitando com binóculos; depois faz sexo em alto e bom som, com a porta aberta, para o estímulo dos familiares que assistem ao ato. Gritos de pavor e gritos de orgasmo se confundem. A montagem acentua o desconforto graças à aproximação entre afetos contrários: após um estupro, a cena de um beijo romântico; após a união familiar, flashes de cadáveres magérrimos lançados numa vala comum.

A Bruxa de Hitler nunca perde de vista a responsabilidade ética e histórica a respeito da imagem do nazismo. Isso significa que a fantasia evita atenuar o peso do genocídio. Por meio de uma poesia digna do cinema fantástico, representa a sensação do horror, a potência macabra dos acontecimentos verídicos — culminando na excelente sequência do labirinto ao som de Noite Feliz em alemão. Mais forte do que apreender o real ou reconstituí-lo com precisão de figurinos e cenários seria encontrar ferramentas próprias, e autorais, capazes de significar a selvageria ocorrida durante a guerra.

Neste sentido, o resultado será confuso, grotesco, perturbador, insano — assim como os cineastas percebem o próprio nazismo. Na saída da sessão, durante o Bonito Cine Sur, alguns espectadores manifestaram a impressão de um filme forte demais, disperso demais. Apontaram que a narrativa poderia ser mais curta, trazer menos imagens históricas, incluir mais explicações. De qualquer modo, ninguém aparenta ter saído indiferente ao caldeirão voluntariamente provocador de Molina e Ardito. A obra nunca visou a comunicação fácil e direta. 

Pelo contrário, no apelo a um espectador ativo, que reconheça e decifre o vasto catálogos de símbolos e referências, reside a força de um cinema de reflexão, contrário à diversão ou ao escapismo. A obra se torna ainda mais potente em virtude do atual momento político na Argentina, quando um candidato de extrema-direita possui chances reais de se eleger, prometendo implementar um retrocesso social e cultural que os brasileiros conhecem bem. 

A chegada da família nazista à Patagônia também dialoga com os perigos iminentes de um país conhecido pela luta contra a ditadura e contra a impunidade de seus algozes históricos. “Eu não sou um monstro. Fiz o que tinha que ser feito”, declara o oficial alemão. Esta banalidade do horror, ou a naturalização dos crimes, ecoa de maneira direta com as falas agressivas, ainda que institucionalizadas, do candidato que prega a barbárie. Algumas assombrações continuam à espreita.

A Bruxa de Hitler (2022)
8
Nota 8/10

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