O Pastor e o Guerrilheiro (2022)

Brasil escuro, Brasil obscuro

título original (ano)
O Pastor e o Guerrilheiro (2022)
país
Brasil
gênero
Drama, Histórico
duração
115 minutos
direção
José Eduardo Belmonte
elenco
Johnny Massaro, Julia Dalavia, César Mello, Cássia Kis, Sérgio Mamberti, Túlio Starling, Ana Hartmann, William Costa, Antônio Grassi, Buda Lira, Gabriela Correa, Similião Aurélio, Ricardo Gelli
visto em
Cinemas

O Pastor e o Guerrilheiro investe numa estrutura tão ousada quanto arriscada. Há uma quantidade significativa de personagens, linhas temporais, localidades e focos narrativos. Salta-se de Brasília em 1999 para a Universidade de Brasília em 1968, e para a Guerrilha do Araguaia em 1973. A montagem alterna entre a estudante Juliana (Julia Dalavia), o militante João (Johnny Massaro) e o líder evangélico Zaqueu (César Mello), cada um com seus conflitos próprios, seus dilemas familiares, seus objetivos distintos.

Devido ao título e à montagem paralela, compreende-se que todos estes percursos se encontrem eventualmente — em outras palavras, a história da jovem contemporânea, do pastor e do guerrilheiro precisam se unir num objetivo único. No entanto, a união demora bastante a ocorrer, concretizando-se apenas próxima ao clímax. Antes disso, há discussões tão amplas quanto importantes acerca da luta armada no Brasil, da herança nefasta dos militares anistiados pós-ditadura, do sistema de cotas na universidade, e da modernização dos cultos neopentecostais, entre outras.

Esta escolha produz um dilema considerável em relação ao ponto de vista. Por qual perspectiva se resgata a história nefasta de torturas e violações de direitos humanos? Pelo presente, pelo passado? Pelas vítimas (caso de João), ou pelas testemunhas (caso de Zaqueu)? Devemos observar todos de fora, de maneira distanciada e crítica, ou aderir às perspectivas e dilemas de todos, pressupondo que a dor da estudante equivalha àquela do guerrilheiro e à culpa do pastor, que esconde dos filhos sua passagem na prisão?

Talvez esta seja uma das questões mais importantes do cinema brasileiro contemporâneo: a dispersão do ponto de vista. Temos multiplicado as obras corais e coletivas, e embora algumas orquestrem bem a multiplicidade de visões e subjetividades, outras apresentam dificuldade considerável de enxergar o mundo pela individualidade de cada um. Basta pensar no panorama que inclui Noites Alienígenas, Carvão, Mato Seco em Chamas, O Rio do Desejo, A Porta ao Lado, Medusa… 

O Pastor e o Guerrilheiro cumpre o propósito de reposicionar uma questão fundamental. Qual ferramenta permite mudar o mundo: a política ou a religião?

A vontade de abraçar mais temas, espaços, temporalidades e personagens produz obras de escopo imenso, e com compreensível dificuldade de se aprofundar em suas temáticas. No caso da obra de José Eduardo Belmonte, este desafio de foco narrativo reproduz aquele visto em As Verdades (2022). Desta vez, embora haja maior clareza no cruzamento de experiências, o percurso ainda soa um tanto opaco ou hermético, visto que a montagem se diverte em postergar ao máximo o cruzamento entre suas linhas narrativas. 

Assim, as histórias secundárias da avó doente (Cássia Kiss), do carcereiro arrependido (Similião Aurélio), da paixão de militância (Ana Hartmann) e do amigo de faculdade com passado familiar igualmente questionável (Túlio Starling) se perdem no caldeirão de conflitos. A edição se atropela a ponto de manifestar dificuldade em representar processos. O letreiro “Oitavo dia perdido na floresta”, expresso diante da cruzada de João, surge quando nem sequer tínhamos percebido com clareza a perda de orientações do rapaz. A virada do milênio se aproxima, embora não se transmita a importância do evento para nenhum personagem desta linha temporal.

A passagem do tempo também se reflete num trabalho ostensivo de maquiagem para envelhecimento dos personagens. Embora exista clara competência na criação de rugas, e um cuidado para não se cair na caricatura, as peles se tornam opacas, destituída de poros e brilho. O recurso se faz perceber com facilidade, o que retira a imersão via naturalismo nas cenas do pastor adulto e de seu carcereiro, encontrado no culto. Algumas frases de efeito também soam artificiais, pois falta tempo para trabalhar seu contexto de modo orgânico. “Precisamos discutir a questão das cotas raciais nas universidades!”, gritam os alunos, no intuito de explicar ao espectador. “Esses pães de queijo, essas lembrancinhas acabam ajudando a gente no fim do mês, né?”, afirma a avó à neta, perfeitamente ciente disso, apenas para explicar ao espectador sua atividade na pequena venda familiar.

Em paralelo, algumas escolhas estéticas surpreendem. A direção de fotografia é inexplicavelmente escura. Cabe abrir um parêntese, neste caso, e levantar a dúvida se esta era uma escolha deliberada dos criadores, ou uma falha da exibição aos críticos, na cabine de imprensa. De qualquer modo, mesmo durante o dia, a céu aberto ou em lugares dotados de janelas amplas, a exemplo da universidade, as imagens soam escuríssimas, perdendo detalhes da direção de arte e da expressão dos atores. No interior das casas, nas festas e na cela de prisão, instauram-se as trevas profundas que prejudicam a percepção das peles negras — o que imediatamente afeta os esforços da atuação de César Mello. 

Ressalvas à parte, O Pastor e o Guerrilheiro cumpre o propósito de reposicionar uma das questões fundamentais do Brasil moderno e contemporâneo, desde a ditadura militar, e que tem pautado os principais conflitos nacionais: o país será consertado através da luta política ou da fé religiosa? Qual ferramenta permite mudar o mundo? Após quatro anos de uma extrema-direita raivosa e reacionária, além de supostamente cristã, chega um projeto diferente, de reforma política visando a reinserção social dos mais pobres. Neste contexto, o longa-metragem se mostra pertinente e atual.

Além disso, é louvável voltar a encontrar, nestes dois últimos anos, projetos mais ambiciosos de José Eduardo Belmonte, que havia dedicado alguns anos a projetos tão competentes quanto modestos e previsíveis. Com suas falhas e excessos, As Verdades e O Pastor e o Guerrilheiro demonstram a vontade de estabelecer um cinema tão acessível ao público amplo quanto palatável à crítica e ao circuito de arte. Trata-se de um importante meio-termo entre o cinema popularesco e as produções mais herméticas de festivais. Há poucos cineastas tateando este território hoje em dia (visto que Jorge Furtado e Laís Bodanzky parecem tê-lo abandonado), de modo que Belmonte soa como uma escolha excelente para ocupá-lo.

Cabe mencionar, por fim, o empenho notável do elenco para tornar vivo e verossímil este painel de abusos de poder e violações de direitos. Não é fácil encarar as cenas de tortura, a representação dos cultos evangélicos e os movimentos estudantis universitários sem cair num exagero ou na caricatura digna de uma nação polarizada politicamente. Johnny Massaro, César Mello e Ana Hartmann encaram o desafio com uma seriedade tranquila, sem acentuar o heroísmo nem as falhas. Eles transmitem uma leveza que o diretor conseguiu garantir, de maneira coesa, em todo o elenco. Aqui, as qualidades gritam tão alto quanto os deslizes. Melhor assim: que venham obras arriscadas, podendo errar a mão aqui e acolá, em detrimento de mais projetos inofensivos e pouco memoráveis.

PS: Já passou da hora de os materiais de divulgação de filmes pararem de citar histórias inspiradas em “fatos reais”, um pleonasmo sintomático do Brasil de redes sociais e fake news. Todo fato, por definição, é real. Não há “faltos alternativos”, como diria Kellyanne Conway, nem fatos falsos ou fatos fictícios. No país de disputa de narrativas, sobretudo em um filme de evidente caráter político, a atenção aos termos se mostra essencial.

O Pastor e o Guerrilheiro (2022)
6
Nota 6/10

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