Após cinco dias intensos de exibições, debates e laboratórios, chega ao fim a 9ª Mostra de Cinema de Gostoso. O evento potiguar se destaca pelas particularidades no calendário cinematográfico nacional: em primeiro lugar, graças às sessões ao ar livre, nas areias da praia do Maceió, equipada com 600 cadeiras sempre lotadas, e mais dezenas (às vezes, centenas) de pessoas sentadas ao redor. É raríssimo o cinema nacional ser prestigiado por um público tão amplo, simultaneamente.
Em segundo lugar, pelo fato de ser gratuito e aberto ao público. Esta característica está ausente na maior parte dos festivais, ora focados nos críticos e profissionais da indústria, ora abertos ao público mediante pagamento de ingressos. A mostra dirigida por Eugênio Puppo e Matheus Sundfeld possui como alvo a formação de plateia e olhares, e o acesso cultural à população de qualquer renda e formação. Assim, o evento cinematográfico despreza o aspecto de glamour e exclusividade (nada mais abrangente do que ver artistas, cinegrafistas e públicos vestindo o mesmo traje, camiseta-bermuda-chinelo) em prol de virtudes mais importantes, como a horizontalidade do acesso ao cinema.
Em terceiro lugar, chama a atenção a qualidade da curadoria. Festivais que voltam parte de sua programação a circuitos periféricos costumam selecionar as obras mais acessíveis e populares da lista aos espectadores que se imagina serem pouco abertos a invenções de linguagem. Aqui, o paternalismo está ausente: a 9ª Mostra de Gostoso trouxe os filmes brasileiros mais cobiçados e premiados do ano. Os longas-metragens incluem Noites Alienígenas, vencedor do Festival de Gramado; Paloma, vencedor do Festival do Rio; A Mãe, vencedor do Festival de Vitória; Marte Um, representante brasileiro no Oscar e selecionado em Sundance; Carvão, selecionado em Toronto e San Sebastián; Regra 34, vencedor de Locarno, etc. Entre os curtas-metragens, Infantaria, Ainda Restarão Robôs nas Ruas do Interior Profundo e Ela Mora Logo Ali vêm de prêmios importantes em outros festivais. A presença massiva do público para estas sessões rompe com o preconceito de que os espectadores não poderiam se interessar por um cinema ousado.
No que diz respeito à temática, a seleção destaca o protagonismo das periferias em oposição ao centro. Seja no Acre, em Brasília, São Paulo, Minas Gerais, Pernambuco ou Ceará, são os moradores comuns de bairros desprivilegiados que lideram as obras exibidas na edição 2022. Visitamos as travestis empobrecidas e analfabetas do sertão (Paloma); os faxineiros e porteiros de Contagem (Marte Um); os humoristas de restaurantes populares em Fortaleza (A Filha do Palhaço); a vendedora ambulante nos bairros mais perigosos de São Paulo (A Mãe); as gangues e comunidades periféricas da Ceilândia (Mato Seco em Chamas); os habitantes pobres e dependentes de drogas afastados do centro de Rio Branco (Noites Alienígenas); um poeta em situação de rua (Alan); uma família carvoeira e interiorana, sem dinheiro para cuidar o avô doente (Carvão) e assim por diante. O único longa-metragem que privilegia a classe média e apresenta instâncias de poder como defensores públicos — caso de Regra 34 — ainda o faz pela perspectiva de uma mulher negra, exceção em sua área de atividade.
Esta forma de cinema evita tanto a exposição turística das belezas e maravilhas do país — a orla do Leblon está distante da paisagem — quanto o retrato espetacular da miséria divertida, ágil, dos filmes de favela (Tropa de Elite, Cidade de Deus). A piedade pela pobreza também passa longe do discurso — em outras palavras, nada de moralismo, nem julgamento moral. Em contrapartida, entram em cena pessoas resistentes, apesar de suas falhas de percurso, combatendo as classes dominantes da maneira que lhes cabe. Os cenários, as gírias locais, os figurinos e os símbolos de cada região apontam para um país diverso, fortemente desigual em termos econômicos e sociais, porém rico em manifestações culturais específicas. As atenções se desviam do eixo Rio-São Paulo e dos personagens que “merecem virar história” para escolher cidadãos comuns, de fácil identificação com as classes populares. Chegou a vez de o cotidiano brilhar no cinema, e a arte privilegiar o mundo como ele é, ao invés do mundo como poderia ser.
A Mostra de Cinema de Gostoso se encerra na condição de vitrine para obras de enfrentamento, constituindo, ela mesma, uma ferramenta de crença no cinema transformador. Presenciar os jovens do coletivo Nós do Audiovisual realizando filmes de qualidade, apesar da pouca experiência e dos recursos limitados (caso de Arrebentação e Barraqueiros) atesta a capacidade do evento em formar espectadores, cineastas, pessoas sensíveis à arte e, acima de tudo, cidadãos.